terça-feira, 24 de julho de 2012

A FALTA QUE FAZ UM TAPA NA CABEÇA

A memória de Ernandes Feitosa



A criança tem como mister a liberdade; o adulto, a memória. Quando me lembro de Barro Duro, na dimensão física, vejo um barro duro e vermelho (já disse isso zil vezes), que na chuva deslizava mais que quiabo. Todos os campos de bola eram assim na minha infância. Eu e meu irmão Manoel marcávamos o campo com a cal da construção, no domingo. E em dia de Faveiras e Fluminense meu coração ficava mais aflito que nos "Flamengo e Vasco" de hoje. Havia no Faveiras um lateral esquerdo, quebrão, chamado Ernandes. Marcador tenaz do craque Valmir do Fluminense. Lembro como se tivesse acontecido ontem, o Nana deslizando naquele barro vermelho, cor de sanque, de minha terra, após dar aquele carrim perigosíssimo, que só ele sabia dar e só o Valmir sabia se desvencilhar daquele jeito. Fora do campo o Ernandes nunca foi violento. Era o cara mais brincalhão de Barro Duro. Amigo de todos. Nunca fazia cara feia para ninguém e me ensinou, ainda em minha infância, que todas as pessoas são iguais e merecem consideração e afeto. O Ernandes era formidável ! Conhecia até a pessoa mais desconhecida da cidade, ainda que morasse no local mais extremo de Barro Duro. Conhecia as pessoas pelo nome e pelo apelido também, claro. Ernandes chegou a ser o vereador mais votado de nosso município em uma eleição. Mas a maior vitória da vida daquele cara batuta foi fazer tantos amigos. O que não era um talento seu particular, mas da família, uma vez que o Peca e o Rivaldo honram com toda certeza aquela fama de gente boa e fazedor de amigos do irmão. Hoje, o nosso Barro Duro é mais triste. Aquele grito gozador não ressoa mais no estádio. E o TAPA NA CABEÇA... LEPO...LEPO...meu Deus, que saudade de nosso conterrâneo! Esqueço até a dor da pancada, que não era pequena. Todavia, sempre há algo além de nossa compreensão limitada. Que Deus te acolha bem, meu alegre amigo! "Sei que você está bem, mas isso não me impede de chorar". Foi só o que agora eu pude lembrar. Ainda bem que só escrevo, se fosse um vídeo, estaria sem fala. (barrodurense é irmão de barrodurense).       

sábado, 21 de julho de 2012

CANTO DO URUTAU

O canto da Saudade é o que impõe mais harmonia. É o velho entoar nostálgico de um tempo dissipado, que tanta falta me faz nesta vida. Do meu riacho Mucambo, que para mim é mais real que o Amazonas; tal qual o rio da aldeia do poeta português, que transcendia o grande Tejo em sua dimensão subjetiva. Estou aqui mais uma vez no meu devaneio telúrico de pensar em meu pequeno lugar. Sei que ninguém vai compreender meu canto de saudade nessa terra maranhense em que vivo e onde o gênio João do Vale cantou o bravio carcará e o formidável poeta Gonçalves Dias fundou o Brasil, rememorando o canto pungente de um sabiá. Eu, todavia, só me lembro de ouvir o canto do Urutau em minha terra. Esta ave mãe-da-lua, que, no sertão enluarado do Piauí, entoa seu canto melancólico e belo, dizendo ao sertanejo que ele tem um companheiro em sua dor. A lembrança do canto do urutau ainda me traz o cheiro daquele barro duro vermelho em que cresci libérrimo. Indo a pé para a barragem do Riacho Seco e ficando o dia inteirinho por lá, sem saber que um dia a vida se tornaria tão complexa. Quando o ano se aproxima do dia cinco de dezembro, lembro inevitavelmente do Barro Duro de minha infância. Quando a Dona Mundica fazia seus bolos deliciosos; quando o Ranulfo era rico, bonito e namorador; quando dona Teresinha Mourão era a pessoa mais sábia da cidade; quando o mestre Umbelino me contava histórias fascinantes de um tempo mais remoto de um Barro Duro que não conheci. O canto do urutau dá mesmo saudade na gente, amigo Zé Rodrigues! Mas a saudade não nos pode perturbar o espírito nem turvar a visão de águia tal qual a de vossa senhoria. Por isso lembro também que Barro Duro abraça muita gente ordinária ao passo que despreza nosso tamanho amor. Ave fantasma de meu sertão natal, dispara teu canto insólito sobre os nossos ouvidos fatigados. Diz ao nosso Barro Duro querido que a uma mãe tudo se perdoa, mesmo a terrível ingratidão. Diz que sinto muita saudade. Que dia cinco de dezembro para mim é doído. Que eu o parabenizo por sua emancipação política e anseio por sua independência ética e cultural.