quarta-feira, 31 de julho de 2013

SOBRE CACHORRO E GENTE




Um professor de música tinha um cachorro chamado Hichko. Ele tinha um amigo verdadeiro "sempre a seu lado". O cão ia com ele toda manhã até a estação de trem. À tarde estava lá a sua espera, quando voltava do trabalho. O professor um dia encontrou a iniludível das gentes. O cachorro ficou cumprindo a mesma rotina por mais de dez anos, sempre a espera de seu amigo. Ele nunca desistiu. O cachorro Marley era pueril como uma criança amada. Genioso, travesso e leal. Marley era companheiro de toda hora. Um cachorro especial, que uniu uma família para sempre. O cachorro Jupi salvou a vida de meu pai da fúria de uma vaca parida. A gente devia muito àquele cão. Tem um poeta mineiro de quem não me lembro o nome agora que disse uma vez que "entre os amigos encontrou muitos cachorros, mas entre os cachorros encontrou um amigo". Eu não sei que coisa maravilhosa foi essa que Deus colocou no coração dos cachorros, mas sei que foi para um bom propósito. O cachorro não abandona seu amigo. Nem mesmo o mais indigno amigo. Por isso é um contrassenso vir a senhora Verônica aqui dizer que seu agressor é um cachorro. Não é, dona Verônica. Porque um cachorro é um companheiro. Seu agressor é um homem desprezível. Ele espancou a senhora diante de suas quatro filhas. Seu agressor é um bicho, dona Verônica. Não se deteve em face do choro de inocentes. É insano e desconhece o amor. Um cachorro dá a vida pelos seus. Seu agressor quis tirar a mãe de meninas já tão abandonadas. A gente para falar precisa ter critério, dona Verônica. Não se deve ferir os bons tão imprudentemente como se escolhe marido imprestável. Como tem filho sem pai neste Maranhão. A gente vê claramente que quem não tem pai precisa do governo. E aí fica órfão mais uma vez. Mas nem passa pela minha cabeça chamar o governo de cachorro. Eu aprendi há muito tempo com minha mãe, lá no também sofrido Piauí, que devemos respeitar o que merece respeito. Eu tenho realmente muita consideração por cachorros.         

sexta-feira, 26 de julho de 2013

UM SORRISO



A coisa mais estúpida que se pode dizer para uma mãe que perdeu a filha é que ela não sofra. Nesse caso o sofrimento é a coisa mais desejada. A dor sem limite. O desalento em seu grau mais atroz. Quem nesse dia vai lembrar de sorriso? Isso aconteceu na vida da senhora Helena. A filha casou-se com um ébrio habitual, que a espancou um dia até a morte. Conheci dona Helena litigando com o uxoricida pela guarda das netas. São duas meninas, belas como a mãe. Com o tempo, percebi que dona Helena não vinha mais falar de processos judiciais. Já chegava chorando. A tristeza no grau máximo. A depressão à porta esperando para arrasar o que lhe restava de vida. Dona Helena conseguiu a prisão do facínora, a guarda das netas e a regularização dos alimentos das pequenas através de uma pensão. Mas toda semana voltava chorando, falava de sua solidão e da saudade que sentia da filha. Algumas coisas na vida marcam mais profundamente do que um ferro em brasa que um dia vi meu tio Antonio marcar uma rês, lá no Piauí. A dor de dona Helena transcendia a dimensão física e dissipava o que na vida a gente mais dá valor. Um dia, era carnaval na cidade, ela chegou, verteu as costumeiras lágrimas e novamente contou de sua insuportável dor. Quando a dor é muito grande, já aprendi que as pessoas não esperam nada senão um olhar de compreensão e uma boca fechada. Então, passei dias para fazer a primeira intervenção verbal no monólogo existencial de dona Helena. Enfim, na hora oportuna, falei. Disse que era carnaval no Parque da Raposa. Cantei para minha nova amiga a marchinha da Jardineira: “oh, Jardineira, por que estás tão triste ?” Depois de meses, ela sorriu. Fez um charme senil e cantou a insincera Aurora. Dona Helena esqueceu da dor naquela terça-feira. Às vezes é necessário esquecer. Disse que já foi a dama mais alegre dos bailes de carnaval no Lions Clube. E saiu sorrindo, bendizendo a juventude. Aí fiquei pensando na vida naquela manhã de terça-feira, lembrando de outros carnavais. A gente não vê o tempo passar. A gente não valoriza os nossos como devia. A gente não faz ideia da falta que faz um sorriso das pessoas que mais se ama. Obrigado, minha triste amiga.                  

segunda-feira, 15 de julho de 2013

SONHOS QUE FENECEM


Ao poeta Valmir Colares

O tempo presente é mesmo veloz. “Quando se vê, já é sexta-feira.” E algumas coisas ficaram por fazer: a execução daquele projeto de vida que esbarra o sono, a felicitação pelo aniversário da mãe, a música preferida, o filme de que se gosta e um tempo livre para dedicar as filhas. Algumas coisas, definitivamente, estão erradas. Como no coral da igrejinha pobre que escondia Jesus por ser simples, a sociedade só vê o que não vale a pena ser visto. O palco é grande. O artista, porém, vê-se empurrado para o silêncio. Já os que representam e fogem da verdade estão sempre bem acolhidos no espetáculo. O palco é a própria vida artificial. A gente caminha inseguro por não saber onde descansar. Uma vez ouvi dizer que “a justiça é o pão do pobre”. Eu acreditei naquilo. Acredito às vezes no que me dizem. Mas sempre quero ver resultado no que acredito, caso contrário desisto. Tenho talento para desistir. Queria ter para arte o mesmo talento que tenho para abandonar os sonhos que fenecem. Eu vou embora. vou de verdade. Não me envergonho de ser eu mesmo. Às vezes vou em pedaços, querendo ficar. Mas é uma ilusão dourar um sonho já extinto. Se fosse possível, teria um baú antigo para guardar afetos e uma lixeira prata para jogar minhas mágoas. A gente tem o ímpeto de fazer alguma coisa útil nessa vida, mas tem como limite um muro. É preciso demolir os muros que nos confinam num espaço pequeno. Aceitar que algumas pessoas não se importam nunca. É crucial detestar os governos com suas escolhas equivocadas. Mas é vital alimentar um sonho novo, mesmo quando tudo vivido possa dizer não. É tempo de caminhar ainda, caro Valmir Colares. A gente não pode dizer não a uma mão estendida sem ardis. Um companheiro para a travessia dura da vida social é sempre um alento. E a gente não pode prescindir de seu talento e de sua contundente voz. Tenho uma regra única para artistas: que eles sejam livres; que se expressem de forma autêntica. Nunca tenciono lhes alinhar. “Quem anda na linha é trem de ferro, a liberdade sempre acha um jeito”, como pensa o escritor Manoel de Barros. Não passo um dia sozinho. Sempre tenho um Victor Hugo, um Manuel Bandeira, um João do Vale para dialogar. Aqui ainda temos a rua do Sol e a praça da Saudade. Temos poesia de verdade. E os sonhos que agora nascem não podem fenecer.


sábado, 13 de julho de 2013

NO VIADUTO DO CHÁ




Já passei no viaduto do Chá, mas faz muito tempo. Foi em 1996, quando morei em São Paulo. A gente saía de Itaquaquecetuba, antes do dia amanhecer, para procurar emprego. Pegava o ônibus do Jardim América até a estação Armênia, de lá, o metrô para o centro. Eu tinha o sonho de conhecer os lugares por onde passaram os poetas modernistas de 1922. Mas, no Teatro Municipal de São Paulo, ficava de fora, na calçada, lendo o amarelim de empregos e esperando o futuro. Lembro que o viaduto do Chá fica perto do Teatro. Lembro também que lá os modernos recitaram "os sapos" de Manuel Bandeira e a burguesia paulistana reagiu com desdém. Era cedo e fazia frio. O povo passava veloz. Há muita coisa importante a fazer em uma cidade como São Paulo. Naquela manhã de novembro, porém, nem tudo era pressa entre as gentes. Vi um casal de mendigos sentados que não pareciam estar ali de passagem. O mendigo macho ergueu os braços para o céu, soltou um grunhido feio e voltou a deitar. O mendigo fêmea mexeu-se de forma mais contida, olhou ao longe e também não esboçou ímpeto de se levantar. Já li uma vez que "cada homem carrega uma pequena história". Sou da opinião de que toda história merece ser contada, mesmo as tida por desimportantes, o que é sempre muito relativo. Mas não estou contando esta história agora apenas pela miséria que vi. Era uma manhã muito fria. E eu aquecia as mãos enquanto sentia minhas novas incertezas. Só o que tinha era ansiedade e um pouco de esperança numa alma ainda jovem. Tive medo do Viaduto do Chá e sua rude hospedaria. Foi quando vi que o mendigo macho despertou por completo. Olhou o mendigo fêmea com ternura, acariciou-lhe o cabelo, beijou a testa e me ensinou naquele dia triste que nada na vida pode tirar nossa humanidade.                     

sexta-feira, 5 de julho de 2013

MANGUITA


Quando eu estava na faculdade, às vezes, saía e voltava lá para o meu riacho de infância. O Ítalo ficava falando de Hans Kelsen, John Stuart Mill, Norberto Bobbio e eu já estava longe. O objeto de meu fascínio era mais que os livros, era a própria vida. Como o escritor Carlos Drummond de Andrade um dia percebera que sua história era mais bonita do que a de Robson Crusué, eu também via mais vida em minha história do que em mil tratados de boa filosofia. Assim, eu já não era mais um estudante, voltara a ser um aventureiro da Buritirana. Não era fácil transpor aquelas veredas íngremes. Cada descida era um risco mortal. O caminho mais duro para o Mucambo era pela Buritirana. Mas foi bom enfrentar a Buritirana. Eu estava aprendendo a viver. No inverno ou no estio, tudo me levava ao meu riacho Mucambo. Aquele lugar maravilhoso completava a minha nutrição diária e espantava a inanição. Tudo era natural naqueles dias. A gente precisava esperar cada estação. Eu ficava ansioso pelo tempo de manga. Quando as mangas maduravam, eu não fazia caso dos ingás. As outras frutas perdiam o sabor. Na escassez, a gente comia até jatobá, mas com as mangas o paladar se refinava. Eram muitas e variadas. Cada mangueira uma delícia. Se pelos frutos se conhece a árvore, foi um grande prazer conhecer o velho pé de manguita do brejo de seu David. A manguita era o menor fruto do mangal, mas não existe manga mais suculenta! É do tamanho de uma maçã pequena. Tem um cheiro inebriante. Mistura os sentidos. O cheiro é uma delícia. A árvore de manguita é grande como o sabor daquele fruto miúdo. A gente vive com o cheiro de manguita para sempre. Não sai da memória. Transcende à consciência, é uma sensação de raiz. Na chuva a manguita caía direto em minha mão, já lavada. Eu provei delícias de minha terra! O Ítalo nasceu e passou a infância em São Luís. O pai dele era médico. Acho que o Ítalo nunca comeu uma manguita. Já o meu pai era lavrador e eu nasci em Nova Vida, agreste do Piauí. Onde cresci havia muitos ingazeiros e mangueiras, na beira do riacho. O ingá é sem sabor como pedra de toá, mas a manga é rainha das delícias e tem espírito social. É o alimento dos oprimidos sem pomar. Minha família não tinha terras, nem gado, nem mangal, mas a generosidade dos proprietários de terra e a cultura do lugar nunca deixaram faltar manga em meu tiracolo. A manga foice do Pinico tinha a vantagem de ser grande e logo aplacar a fome. A manga-fiapo do Arial compensava a grande caminhada. A peito de moça do mangal do Cirilo causava-me frenesi, lembrando de Rosa, uma menina doce de minha turma na escola Afrânio Nunes. A manga-rosa do Brejo era proibido apanhar, mas a gente furtava e comia. A gente naquele tempo não aceitava que a melhor parte das coisas só fosse acessível aos ricos. Depois de tudo, eu voltava para faculdade, com a boca amarelada lambuzada de manga. O Ítalo, meu inteligente amigo do Maranhão, ainda falava de Sartre. Aí me lembrei de Paulo Freire e vi que “a vida precede os livros” e que minha história também era mais bonita do que a de Robson Crusué”.