Um professor de música tinha um cachorro chamado Hichko. Ele
tinha um amigo verdadeiro "sempre a seu lado". O cão ia com ele toda
manhã até a estação de trem. À tarde estava lá a sua espera, quando voltava do trabalho. O professor um dia
encontrou a iniludível das gentes. O cachorro ficou cumprindo a mesma rotina
por mais de dez anos, sempre a espera de seu amigo. Ele nunca desistiu. O
cachorro Marley era pueril como uma criança amada. Genioso, travesso e leal. Marley
era companheiro de toda hora. Um cachorro especial, que uniu uma família para
sempre. O cachorro Jupi salvou a vida de meu pai da fúria de uma vaca parida. A
gente devia muito àquele cão. Tem um poeta mineiro de quem não me lembro o nome
agora que disse uma vez que "entre os amigos encontrou muitos cachorros,
mas entre os cachorros encontrou um amigo". Eu não sei que coisa
maravilhosa foi essa que Deus colocou no coração dos cachorros, mas sei que foi
para um bom propósito. O cachorro não abandona seu amigo. Nem mesmo o mais
indigno amigo. Por isso é um contrassenso vir a senhora Verônica aqui dizer que
seu agressor é um cachorro. Não é, dona Verônica. Porque um cachorro é um
companheiro. Seu agressor é um homem desprezível. Ele espancou a senhora diante
de suas quatro filhas. Seu agressor é um bicho, dona Verônica. Não se deteve em
face do choro de inocentes. É insano e desconhece o amor. Um cachorro dá a vida
pelos seus. Seu agressor quis tirar a mãe de meninas já tão abandonadas. A
gente para falar precisa ter critério, dona Verônica. Não se deve ferir os bons
tão imprudentemente como se escolhe marido imprestável. Como tem filho sem pai
neste Maranhão. A gente vê claramente que quem não tem pai precisa do governo.
E aí fica órfão mais uma vez. Mas nem passa pela minha cabeça chamar o governo
de cachorro. Eu aprendi há muito tempo com minha mãe, lá no também sofrido
Piauí, que devemos respeitar o que merece respeito. Eu tenho realmente muita
consideração por cachorros.
quarta-feira, 31 de julho de 2013
sexta-feira, 26 de julho de 2013
UM SORRISO
A
coisa mais estúpida que se pode dizer para uma mãe que
perdeu a filha é que ela não sofra. Nesse caso o
sofrimento é a coisa mais desejada. A dor sem limite. O
desalento em seu grau mais atroz. Quem nesse dia vai lembrar de
sorriso? Isso aconteceu na vida da senhora Helena. A filha casou-se
com um ébrio habitual, que a espancou um dia até a
morte. Conheci dona Helena litigando com o uxoricida pela guarda das
netas. São duas meninas, belas como a mãe. Com o tempo,
percebi que dona Helena não vinha mais falar de processos
judiciais. Já chegava chorando. A tristeza no grau máximo.
A depressão à porta esperando para arrasar o que lhe
restava de vida. Dona Helena conseguiu a prisão do facínora,
a guarda das netas e a regularização dos alimentos das
pequenas através de uma pensão. Mas toda semana
voltava chorando, falava de sua solidão e da saudade que
sentia da filha. Algumas coisas na vida marcam mais profundamente do
que um ferro em brasa que um dia vi meu tio Antonio marcar uma rês,
lá no Piauí. A dor de dona Helena transcendia a
dimensão física e dissipava o que na vida a gente mais
dá valor. Um dia, era carnaval na cidade, ela chegou, verteu
as costumeiras lágrimas e novamente contou de sua insuportável
dor. Quando a dor é muito grande, já aprendi que as
pessoas não esperam nada senão um olhar de compreensão
e uma boca fechada. Então, passei dias para fazer a primeira
intervenção verbal no monólogo existencial de
dona Helena. Enfim, na hora oportuna, falei. Disse que era carnaval
no Parque da Raposa. Cantei para minha nova amiga a marchinha da
Jardineira: “oh, Jardineira, por que estás tão triste
?” Depois de meses, ela sorriu. Fez um charme senil e cantou a
insincera Aurora. Dona Helena esqueceu da dor naquela terça-feira.
Às vezes é necessário esquecer. Disse que já
foi a dama mais alegre dos bailes de carnaval no Lions Clube. E saiu
sorrindo, bendizendo a juventude. Aí fiquei pensando na vida
naquela manhã de terça-feira, lembrando de outros
carnavais. A gente não vê o tempo passar. A gente não
valoriza os nossos como devia. A gente não faz ideia da falta
que faz um sorriso das pessoas que mais se ama. Obrigado, minha
triste amiga.
segunda-feira, 15 de julho de 2013
SONHOS QUE FENECEM
Ao
poeta Valmir Colares
O
tempo presente é mesmo veloz. “Quando se vê, já
é sexta-feira.” E algumas coisas ficaram por fazer: a
execução daquele projeto de vida que esbarra o sono, a
felicitação pelo aniversário da mãe, a
música preferida, o filme de que se gosta e um tempo livre
para dedicar as filhas. Algumas coisas, definitivamente, estão
erradas. Como no coral da igrejinha pobre que escondia Jesus por ser
simples, a sociedade só vê o que não vale a pena
ser visto. O palco é grande. O artista, porém, vê-se
empurrado para o silêncio. Já os que representam e fogem
da verdade estão sempre bem acolhidos no espetáculo. O
palco é a própria vida artificial. A gente caminha
inseguro por não saber onde descansar. Uma vez ouvi dizer que
“a justiça é o pão do pobre”. Eu acreditei
naquilo. Acredito às vezes no que me dizem. Mas sempre quero
ver resultado no que acredito, caso contrário desisto. Tenho
talento para desistir. Queria ter para arte o mesmo talento que tenho
para abandonar os sonhos que fenecem. Eu vou embora. vou de verdade.
Não me envergonho de ser eu mesmo. Às vezes vou em
pedaços, querendo ficar. Mas é uma ilusão dourar
um sonho já extinto. Se fosse possível, teria um baú
antigo para guardar afetos e uma lixeira prata para jogar minhas
mágoas. A gente tem o ímpeto de fazer alguma coisa útil
nessa vida, mas tem como limite um muro. É preciso demolir os
muros que nos confinam num espaço pequeno. Aceitar que algumas
pessoas não se importam nunca. É crucial detestar os
governos com suas escolhas equivocadas. Mas é vital alimentar
um sonho novo, mesmo quando tudo vivido possa dizer não. É
tempo de caminhar ainda, caro Valmir Colares. A gente não pode
dizer não a uma mão estendida sem ardis. Um companheiro
para a travessia dura da vida social é sempre um alento. E a
gente não pode prescindir de seu talento e de sua contundente
voz. Tenho uma regra única para artistas: que eles sejam
livres; que se expressem de forma autêntica. Nunca tenciono
lhes alinhar. “Quem anda na linha é trem de ferro, a
liberdade sempre acha um jeito”, como pensa o escritor Manoel de
Barros. Não passo um dia sozinho. Sempre tenho um Victor Hugo,
um Manuel Bandeira, um João do Vale para dialogar. Aqui ainda
temos a rua do Sol e a praça da Saudade. Temos poesia de
verdade. E os sonhos que agora nascem não podem fenecer.
sábado, 13 de julho de 2013
NO VIADUTO DO CHÁ
Já passei no viaduto do Chá, mas faz muito tempo. Foi em
1996, quando morei em São Paulo. A gente saía de Itaquaquecetuba, antes do dia
amanhecer, para procurar emprego. Pegava o ônibus do Jardim América até a
estação Armênia, de lá, o metrô para o centro. Eu tinha o sonho de conhecer os
lugares por onde passaram os poetas modernistas de 1922. Mas, no Teatro
Municipal de São Paulo, ficava de fora, na calçada, lendo o amarelim de
empregos e esperando o futuro. Lembro que o viaduto do Chá fica perto do Teatro.
Lembro também que lá os modernos recitaram "os sapos" de Manuel
Bandeira e a burguesia paulistana reagiu com desdém. Era cedo e fazia frio. O
povo passava veloz. Há muita coisa importante a fazer em uma cidade como São
Paulo. Naquela manhã de novembro, porém, nem tudo era pressa entre as gentes. Vi
um casal de mendigos sentados que não pareciam estar ali de passagem. O mendigo
macho ergueu os braços para o céu, soltou um grunhido feio e voltou a deitar. O
mendigo fêmea mexeu-se de forma mais contida, olhou ao longe e também não
esboçou ímpeto de se levantar. Já li uma vez que "cada homem carrega uma
pequena história". Sou da opinião de que toda história merece ser contada,
mesmo as tida por desimportantes, o que é sempre muito relativo. Mas não estou
contando esta história agora apenas pela miséria que vi. Era uma manhã muito
fria. E eu aquecia as mãos enquanto sentia minhas novas incertezas. Só o que
tinha era ansiedade e um pouco de esperança numa alma ainda jovem. Tive medo do
Viaduto do Chá e sua rude hospedaria. Foi quando vi que o mendigo macho
despertou por completo. Olhou o mendigo fêmea com ternura, acariciou-lhe o
cabelo, beijou a testa e me ensinou naquele dia triste que nada na vida pode
tirar nossa humanidade.
sexta-feira, 5 de julho de 2013
MANGUITA
Quando eu estava na faculdade, às vezes, saía e voltava lá para o meu riacho de infância. O Ítalo ficava falando de Hans Kelsen, John Stuart Mill, Norberto Bobbio e eu já estava longe. O objeto de meu fascínio era mais que os livros, era a própria vida. Como o escritor Carlos Drummond de Andrade um dia percebera que sua história era mais bonita do que a de Robson Crusué, eu também via mais vida em minha história do que em mil tratados de boa filosofia. Assim, eu já não era mais um estudante, voltara a ser um aventureiro da Buritirana. Não era fácil transpor aquelas veredas íngremes. Cada descida era um risco mortal. O caminho mais duro para o Mucambo era pela Buritirana. Mas foi bom enfrentar a Buritirana. Eu estava aprendendo a viver. No inverno ou no estio, tudo me levava ao meu riacho Mucambo. Aquele lugar maravilhoso completava a minha nutrição diária e espantava a inanição. Tudo era natural naqueles dias. A gente precisava esperar cada estação. Eu ficava ansioso pelo tempo de manga. Quando as mangas maduravam, eu não fazia caso dos ingás. As outras frutas perdiam o sabor. Na escassez, a gente comia até jatobá, mas com as mangas o paladar se refinava. Eram muitas e variadas. Cada mangueira uma delícia. Se pelos frutos se conhece a árvore, foi um grande prazer conhecer o velho pé de manguita do brejo de seu David. A manguita era o menor fruto do mangal, mas não existe manga mais suculenta! É do tamanho de uma maçã pequena. Tem um cheiro inebriante. Mistura os sentidos. O cheiro é uma delícia. A árvore de manguita é grande como o sabor daquele fruto miúdo. A gente vive com o cheiro de manguita para sempre. Não sai da memória. Transcende à consciência, é uma sensação de raiz. Na chuva a manguita caía direto em minha mão, já lavada. Eu provei delícias de minha terra! O Ítalo nasceu e passou a infância em São Luís. O pai dele era médico. Acho que o Ítalo nunca comeu uma manguita. Já o meu pai era lavrador e eu nasci em Nova Vida, agreste do Piauí. Onde cresci havia muitos ingazeiros e mangueiras, na beira do riacho. O ingá é sem sabor como pedra de toá, mas a manga é rainha das delícias e tem espírito social. É o alimento dos oprimidos sem pomar. Minha família não tinha terras, nem gado, nem mangal, mas a generosidade dos proprietários de terra e a cultura do lugar nunca deixaram faltar manga em meu tiracolo. A manga foice do Pinico tinha a vantagem de ser grande e logo aplacar a fome. A manga-fiapo do Arial compensava a grande caminhada. A peito de moça do mangal do Cirilo causava-me frenesi, lembrando de Rosa, uma menina doce de minha turma na escola Afrânio Nunes. A manga-rosa do Brejo era proibido apanhar, mas a gente furtava e comia. A gente naquele tempo não aceitava que a melhor parte das coisas só fosse acessível aos ricos. Depois de tudo, eu voltava para faculdade, com a boca amarelada lambuzada de manga. O Ítalo, meu inteligente amigo do Maranhão, ainda falava de Sartre. Aí me lembrei de Paulo Freire e vi que “a vida precede os livros” e que minha história também era mais bonita do que a de Robson Crusué”.
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