Ninguém tem ao certo a dimensão do medo. Quando criança, o
seu Lapindaia era para mim o leviatã dos mares fenícios, e seu pigarro, qual um
grunhido do mostro marinho descrito no livro de Jó, me apressava a reação
instintiva para fuga. Mas seu Lapindaia era apenas um velhinho cego, neto de
escravos. Eu não devia temê-lo se não tivesse roubando seus cajus. Era um pé de
caju enorme. A castanha era bibô. Até seu Chico Calé, na hora da compra, reconhecia
se a castanha fosse do pé de caju de seu Lapindaia. Quando seu Calé olhava para
mim, eu já ia me justificando, como um ladrãozim inexperiente que era. "Eu
num robei no pé de caju do Lapindaia não, seu Chico. Ganhei dos meninos da rua
do Tiro, na galinha gorda, pode perguntar o Pretim. Num foi não, Pretim?".
Pretinho me ajudava, "foi sim, seu Calé, exi infiliz tarra cum sorte di
mais hoje". O comerciante sorria, fingindo acreditar. Eu até jogava
galinha gorda e triângulo de peteca, mas meu litro enchia de castanha mesmo era
quando eu roubava as bibozonas do Lapindaia. Aquele pé de caju era único. Parecia
um fruto encantado, vindo da terra dos gigantes mitológicos, onde habitam os
leviatãs. Depois de adulto, parei com a atividade indigna do furto, mas sou
frequentemente assombrado pelo Leviatã moderno de Thomas Hobbes a que chamamos
Estado.
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014
domingo, 2 de fevereiro de 2014
A HISTÓRIA DE FLORIANO
A infância em Salgueiro fora inesquecível. Floriano era como
esses meninos felizes da classe média clássica. Estudou na melhor escola da
cidade e possuiu bicicleta BMX. O futuro às vezes não dá nem um sinal de como
será. Talvez por isso a gente se perca no presente e não veja certas veredas de
escape. Quando Floriano concluiu a primeira fase na escola, a família lhe pôs
para estudar em Recife. Foi na faculdade que conheceu Juliano e Manuel. E foi
com esses amigos que conheceu a boemia da capital. “Era quem sabe a esperança
de ir a outro lugar”. O tempo mais duro que existe é sempre o presente. Floriano
tinha agora uma nova vida, achava tudo estranho, mas fascinante também. Manuel
era um rapaz calmo e inteligente, metido com coisas de versos. Conhecia uns
poetas na cidade, e nas conversas com Floriano sempre queria saber coisas sobre
o sertão. Com Manuel, Floriano podia falar de sua vida em Salgueiro e contar ao
amigo a história de sua família, o interesse do pai por política e o desejo da
mãe de vê-lo formar-se advogado. O pai de Floriano, Dr. Clóvis Nogueira, era um
advogado conhecido na região de Salgueiro e seu avô paterno, coronel Jorge
Nogueira, fora prefeito da cidade por dois mandatos. Além de realizar o desejo
da mãe, Floriano tinha a obrigação de manter a tradição da família, que era de
poder político e distinção social. Ademais, era o único filho homem do casal
Nogueira e ainda o primogênito. Suas duas irmãs eram pequenas e a família tinha
para elas outros planos. Em Recife, as aulas lhe atraíam menos que as noites de
brisa e boemia. Juliano era daqueles amigos que nenhum estudante devia ter. O
rapaz só pensava em mulheres e festas. É certo que Floriano tinha mais
afinidade com o amigo Manuel, que era culto e comedido. Todavia, era com
Juliano que Floriano saía mais frequentemente. Numa dessas andanças pela cidade
o rapaz conheceu o mais forte e único amor de sua vida. Floriano viu em Ana
Cláudia tudo o que era preciso para lhe encantar. Se esta narrativa aqui fosse
um romance, eu ia escrever cinco páginas para dizer como esse encontro se deu. Para
o meu gênero apressado basta dizer que foi um encontro e uma paixão. Não faltou
desassossego, nem ciúmes, nem brigas. Floriano agora só tinha juízo para pensar
em Ana Cláudia. Foi, desde o início, um relacionamento conturbado. Durou o
suficiente para esperar o dia da tragédia, que não demorou chegar. Floriano era
um jovem ansioso. E a paixão traz sempre um desequilíbrio mental duradouro. Manuel
tentou alertar o amigo sobre seu estado, dizendo que Floriano devia cuidar dos
estudos e não concentrar todo seu tempo e atenção apenas ao namoro com Ana
Cláudia. Mas o rapaz, como todos os apaixonados, não estava para ouviu
conselhos. Faltava as aulas na faculdade e queria está sempre ao pé de Ana
Cláudia, que o via apenas como mais um homem. Ana Cláudia foi para Floriano a
única mulher. Era uma tarde qualquer no Recife, quando pela praia Floriano surpreendeu
Ana Cláudia aos beijos com Juliano. A razão fugiu de Floriano naquele instante.
O amigo desalmado não foi homem para esperar por sua fúria. Ana Cláudia não
teve tempo de fugir. Floriano espancou a mulher sem piedade e não a matou
porque banhistas intervieram a favor da moça. “Rapariga da peste, eu ainda te
mato”, bradava Floriano enquanto fugia. Ninguém mais viu em Recife aquele jovem
estudante atormentado. Os Nogueiras de Salgueiro foram várias vezes a capital
do estado para saber de Floriano. Nunca foi possível saber notícia alguma. Procuraram
no necrotério, mas nada. Eu não sei como aquele homem culto veio parar em minha
cidade. Eu sempre o via no mercado municipal como um mentecapto. Via-se, porém,
que era um homem com estudo e era gentil. Nos poucos momentos de lucidez,
falava dos mistérios da vida e de seu passado em Pernambuco. Xingava muito. “Rapariga
da peste” era o que mais se ouvia. Vivia numa choupana no pé do morro. Eu e
outros moleques da rua íamos vê-lo. Com a perversidade típica da idade, jogávamos
pedra em sua casa só para ouvi-lo xingar. O tempo passou. O velho morreu, onde
hoje fica o bairro Floriano. Dizem que um dia umas pessoas muito distintas, com
sotaque pernambucano, procuravam um membro de sua família de nome Floriano, que
vivera por muitos anos naquela cidadezinha, segundo haviam apurado. Era nosso
personagem. Daí fiquei sabendo de onde viera o homem que dá nome ao nosso
bairro. Mas como conhecer sua história? Então resolvi escrever a história de
Floriano Nogueira Sobrinho. Não sei se me saiu meio ao Chicó de Ariano
Suassuna, mas asseguro que a história sucedeu assim.
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