sexta-feira, 17 de agosto de 2012

UMA MÚSICA





Tudo que buscamos é a paz. Dentro e fora de nós. Na mais sublime canção que sempre embala nossa vida. Eu procuro nas canções as belas histórias. A música diz dos outros e diz de mim. Promove os encontros e dá razão ao clichê de que embala os corações.
Não entender de música senão as histórias talvez não seja de todo ruim. Permite a liberdade de discorrer, comovido, dos ritmos que encantam sem o saber por quê. Sinto-me assim com Beethoven e suas sinfonias genias. Amo, pois, o ritmo, o arranjo, as ondas voando e ligando diferentes pessoas às mesmas emoções. Admiro a concentração dos músicos, cujo instrumento e a canção lhes constituem o universo. Mas o que adoro na música mesmo são as histórias!
Uma música faz recordar o que fomos. O que o tempo impiedoso malbaratou. Uma que dizia que “amor igual ao teu jamais encontrarei” passou como uma nuvem no sertão. Outra que diz que”o meu lugar é onde você quer que ele seja”, não foi. Mas eu me lembro muito bem... “ respeitar as lágrimas. Mais ainda as risadas”. “Ter também a palavra certa pra doutor não reclamar”. Partir para a cidade proibida. Lembrar que o tempo não para mesmo. Enfim, compor as histórias e levar as lembranças. Eu sempre gostei de música!
João Cabral de Melo Neto, poeta bom, dizia não gostar de música. Para ele, ela o fazia dormir. Ele gostava de algo que o fizesse acordar. Talvez por isso fosse tão lúcido, mas um pouco radical, não? Confessava gostar, todavia, das canções populares de Pernambuco. E nisso tinha toda razão, são ótimas! Mas a música também faz acordar. Vejam as canções engajadas, após o trinta e um de março de 1964! Literalmente a música acorda. Em Teresina, o ano era 1995, o espetacular radialista Dom Severino Neto ( onde estás? ) despertava-me com seu madrugada mirante. Músicas fantásticas do Brasil e do Maranhão.” Era legal merrmo! “ Que locutor! Que saudade, velho Dom!
Há também as penetrantes melodias e vozes do Cantor. “ sempre hei de suplicar mais perto quero estar, mais perto eu quero estar, meu Deus de ti”. Quando ouço este suplicar, recordo meu primeiro amor. A música nos aproxima. Não devemos nos afastar. Estava certo o grande de Itabira. Agora vou parar de escrever um pouco. Este texto, não sei... Mas as recordações me comoveram. O homem comovido é um bobalhão. O raciocínio cede à emoção. As glândulas dilatam. O fio encurta , o peito fracassa e os olhos amargam como fel. Recordo as canções que me motivaram para a luta. O compositor é meu herói. Assim, pude transcender. Reconhecer nessa arte de pensar a minha própria história. Seguir os passos de meu avô Alexandre, que lia e contava histórias aos seus pares num tempo em que ler era um privilégio dos ricos.
A música decerto fez de mim o que sou. Este reflexo comovido. Não canto em público nem toco instrumento musical, mas extraio de todas as artes as histórias da vida. Uma música agora vai bem. Quem sabe me traz uma história. Quem sabe aquela recordação adormecida. Vamos, então, à música.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

UM POUCO DE BRISA




Só quando subimos a montanha e percebemos que nada de bom aconteceu, acreditamos que a razão de tudo estava mesmo no caminho. Eu estive em São Paulo no natal de 1996. Era a primeira vez que eu subia aquela montanha. Não estava muito feliz de estar ali. Toda a vida que conhecia havia ficado para trás. Talvez se tentasse compor um poema naquele natal, o primeiro verso seria assim: “vou-me embora para Barro Duro”, uma vez que o imaginava, como a Pasárgada do poeta Manuel Bandeira, o espaço onde eu podia realizar tudo aquilo que o presente de então negava.
Parece que acreditei naquela história de que “ aqui faz calor, mas também tem brisa”. É uma ilusão pensar assim. Hoje tenho saudade de São Paulo. A velha Pauliceia ainda desvairada. Da estação Armênia, Ponte Pequena, onde vi a vida ser tão dura. A banca de revista: meu trabalho, minha leitura, minha dor. O vendedor de café, o Ceará, grande amigo, que provavelmente jamais o verei novamente. O taxista Osvaldo não deixava a noite ficar melancólica. Detestava os tenros e o estúpido Magrão, seu concorrente de praça. Um velho advogado aposentado ia me contar as últimas da política. Incrível, mas parecia o noticiário mais recente. Sempre várias bandeiras particulares mascaradas por uma grande bandeira pública. E tinha os garçons das casas chiques da noite paulistana. Um pizzaiolo que fazia a caridade de nos oferecer uma fatia de sua pizza deliciosa. E os moradores de rua a nos dizer que há sempre uns mais infelizes ainda.
Queria voltar para o Piauí ainda que no lombo de uma onça como pensara o compositor maranhense. Foi possível realizar este pequeno desejo. Mas nunca o de fazer tudo o que eu quis. Às vezes, em junho, quando faz um pouco de frio aqui no sítio, lembro-me daquelas noites na avenida Santos Dummot com a Tiradentes e a avenida do Estado. Faziam ali o meu triângulo na Armênia. A noite era grande demais. Pensava em tudo. Lia as revistas. E queria que a vida fosse diferente. Ao romper da aurora, pegava o ônibus do Jardim América e seguia para Itaquaquecetuba dormir o dia inteiro na casa de minha querida irmã Maria. O dia para quem trabalha à noite é o tempo que não existe de Santo Agostinho. Parecia o mito de Sísifo, que consistia em passar o tempo todo a rolar uma grande pedra para o píncaro de uma montanha para em seguida ao arremesso voltar à fatídica rotina. Mas algumas emoções vivi naquele tempo. Quando fui ao viaduto do Chá ver o teatro municipal. Fiquei paralisado, “ foi aqui...! Mário de Andrade e sua turma”. E a arte não seria mais a mesma. Eu não seria mais o mesmo. O grande pássaro da liberdade por ali passou. O grande condor dos Andes. E eu vi.
No Largo São Francisco, a gravura de honra aos poetas : “ Aqui estudou Castro Alves”, “ Aqui estudou Álvares de Azevedo”. A Faculdade de Direito que também viu passar Miguel Reale. E eu só queria voltar para o meu riacho. Banhar numa água fria. Conviver perto dos que não são eminentes, mas sabem cativar com as próprias vidas. Pablo Picasso uma vez se referindo ao pintor francês Paul Cézanne disse “ Ele foi meu único mestre”. Fico feliz porque comigo não foi assim. Sempre tive muitos mestres na arte de escrever. Mas não só os grandes me fascinam. Admiro os mestres da vida com simplicidade. Aqueles que não procuram um fim, mas um caminho. É assim que encontramos um pouco de brisa. E, por isso, as coisas mais importantes podem às vezes não constituir nossa prioridade. Às vezes a cidade mais importante do país não é a mais importante para nós, naquele momento. Só o doce caminho escolhido pelo amor pode satisfazer nosso vazio de significado. Eu tenho mil razões para dizer não, mas eventualmente vou dizer sim. E sei que esse dia valerá a pena. Vamos então curtir a brisa.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O MENINO E O RIACHO






A meu irmão Manoel



Quando eu tinha quinze anos li o livro “O velho e o mar” do escritor Ernest Hemingway de Illinois. Era a história de um velho pescador de grandes peixes. Chamava-se Santiago e tinha muita dignidade. Fiquei encantado imaginando o grande espadarte que ele pescara e comovido com a bela história que lera. Em 1954, Hemingway ganhou o prêmio Nobel de literatura. Dizem que muito em razão daquela história de pescador. Muitos anos depois, li que o mesmo escritor dissera uma vez que se a gente quiser ser escritor, precisa viver os nossos futuros livros.
Assim, já vivi esta história que agora escrevo, há muitos anos. Foi no tempo em que eu era pescador. Nunca tive barco nem conhecia o mar. Minha pescaria era no riacho com o Fernando e o Christiano. Jamais pesquei por diversão. Essa atividade era parte da nossa luta diária pela sobrevivência. Meu pai estava de repouso após a terceira cirurgia no ureter, que é cada um dos dois canais que conduzem a urina de cada rim à bexiga. Meu irmão mais velho, o Mateus, trabalhava que nem um condenado das galés para sustentar a gente. O Eduardo era pequeno e mamãe cuidava dele e ia buscar água no chafariz.
_ Já tá na hora, Mateus.
Era a mamãe acordando o pobre do Mateus para o suplício diário dele naquela terrível pedreira. Ele era o meu herói. Não só por que me alimentava, mas porque era mesmo. Trabalhava o dia inteirinho e à noite ia pra escola e ainda era um dos melhores alunos. Nem é preciso falar de sua honestidade, era o exemplo para todos os garotos do seu tempo. Foi o maior velocista de nossas cercanias. No futebol, era o mais veloz do seu time e fazia sempre muitos gols. Era o orgulho de meu pai, que não estava podendo trabalhar naquele tempo. Em verdade, era o orgulho de nós todos.
Ele me levava para o campo no domingo. Fantástico! Como ele conseguia conduzir tão bem a bola
naquela velocidade superior? Corria o jogo todo. Lançava, driblava e fazia gol. Quem o visse na tarde de domingo naquela correria não imaginava que, cinco horas da madrugada, a mamãe estava lá, impreterivelmente:
_ Mateus, já está na hora, meu filho.
Depois de uma hora que o Mateus tinha saído era a minha vez:
_ Acorda, Carlito. Antes que a fila aumente no Chafariz.
Tinha de levantar e ainda ir buscar um balde d'água no Chafariz. Para mim era uma tarefa penosa para realizar às seis horas da manhã. Eu não tinha a disposição do Mateus para o trabalho. Mas também não ousava desconsiderar uma ordem enfática da mamãe. Era sanção na certa. Chegando no chafariz já encontrava o Fernando e o Christiano na fila.
_ E aí, que hora nós vamos hoje?
_ Depois do almoço.
Todo dia a gente só ia mesmo depois do almoço, mas era o nosso jeito de dizer bom-dia. Naquele tempo a gente não se tratava por doido, maluco ou coisa que o valha.
_ Lá vem ela, Carlito.
Era a Rosa, minha flor de laranjeira! A menina mais bonita da escola e de minha rua.
_ Oi, Carlos, tudo bom?
_ Tudo!
Só ela e a professora Esther me chamavam assim de Carlos. Para os de casa e a patota eu era o Carlito. Como já era bonita! Éramos da mesma idade e devíamos ter apenas uns doze anos naquela época. Eu logo arrumava um pretexto para puxar conversa.
_ Rosa, você respondeu a tarefa de Matemática?
O safado do Fernando já me olhava com censura. Sabia que eu era o melhor da turma em Matemática e estava tirando proveito daquilo para me dar bem com a gata. A Matemática é o caminho mais curto para o coração das garotas bonitas. O fato é que eu tinha de angariar aquela simpatia. E não ia ser com minhas habilidades de pescador. Bendita Matemática!
_ Pra falar sinceramente, não fiz ainda!
_ Passa lá em casa à noite que a gente faz juntos.
_ Será ótimo.
_ Certamente.
_ Então às 7h.
_ Pra mim está bom.
_ Pra mim também.
Aquele pequeno encontro, embora de estudos, era motivo suficiente para fazer aquele dia feliz. A Rosa era muito discreta. Parecia uma mocinha da burguesia conservadora. Vestia-se com simplicidade, mas com muito jeito. A mãe tinha uma banca de fruta no mercado e o pai estava tentando a vida em São Paulo. Era uma família admirada por todos de nossa rua.
Voltei logo com o balde cheio. Tomei aquele banho de isope e fui à escola.
A escola ficava perto de casa. Não demorava quase nada chegar lá. Sempre ia sozinho e só encontrava o pessoal no portão, antes da entrada. O badalo do chocalho tinia sete em ponto. Todo mundo corria para pegar as melhores carteiras, mas o local do assento era consignado. Eu sentava na última carteira da fila central. Para mim era muito perigoso dar as costas aos inimigos. E nessa idade até os grandes homens do futuro são perversos. Coisas do tempo. Coisas insólitas do tempo!
Naquele dia a aula para mim não fez muito sentido. Queria logo que chegasse a noite. “A noite com os seus sortilégios.” Enquanto a professora explicava a matéria, eu tecia meu devaneio. “ Se ela permitir eu vou beijá-la. Não importa hoje a pescaria, a pelada do fim da tarde nem o outro balde de água que ainda tenho de pegar no chafariz no fim da tarde.” Eu quero é a Rosa. Eu quero a poesia;

Oh! Minha Rosa,
Sem teu amor
Minha poesia é prosa
Meu dia é triste
Meu sonho pobre
Meu peixe podre
Não faço gol
E, no entanto,
Tudo é feliz
Se me entregares
O teu amor.

Nesse enternecimento a aula chegou ao fim. Agora é arrancar as minhocas. Pegar o facão. Almoçar e ir à pescaria. Mal engoli meu bocado, o Christiano e o Fernando já estavam lá em casa.
_ Vocês já comeram?
Aqueles moleques tinham mesmo ânsia por pescar.
_ Ora! Você é que passa um ano para ficar pronto. Por isso, só estamos chegando atrasados
no campo à tarde.
Essa preocupação era do Christiano. O pobre era tão ruim de bola que precisava formar a parelha dele. Se não o fizesse ninguém o escolheria. Já eu e o Fernando não precisávamos ter essa preocupação, uma vez que éramos os primeiros a ser escolhidos na formação das barreiras. E, mesmo quando chegávamos depois, tinha sempre um pivete para substituir.
Nossa pescaria compreendia um trajeto de aproximadamente oito quilômetros. mas Caminhávamos dois quilômetros e meio para alcançar a passagem do riacho antes de fazer esse percurso. Era o nosso itinerário diário. Após a escola e antes do futebol. Para nossa odisseia, dispúnhamos de baladeiras, facões e anzóis. Estes só para os porões e lagoas ainda com muita água. A baladeira para eventuais pássaros nas árvores ciliares. Para nossa pesca de riacho, o instrumento de maior utilidade era mesmo o velho facão Tramontina. O colina do papai. Com ele vencíamos os pequenos peixes que se refugiavam embaixo das cuncas caídas das palmeiras de babaçu. Cortávamos as palhas de coco para confeccionar os capotes, que são instrumentos de arrasto nas lagoas com pouca água. Sempre havia algumas lagoas formadas quando o riacho transbordava. As cuncas também serviam para a prática do arrasto, mas só quando a água da lagoa baixava completamente. Nesse tempo, também fazíamos o repisar das águas para baldeá-las e eliminar o seu oxigênio. Assim, os peixes necessitavam ir à superfície, momento em que aproveitávamos o ensejo para abatê-los. Com o facão ainda fazíamos as enfieiras e cortávamos o timbó para se embeber os peixes. Outra prática de pescaria assaz eficiente no riacho era capturar o peixe na loca, que é uma toca subaquática. Isso fazíamos direto com as mãos, sem saber o que encontraríamos realmente. Mas o que eu buscava eram as traíras. As árvores mais frondosas e de raízes maiores formavam o esconderijo para os melhores peixes. Arriscava-me com as duas mãos e muitas vezes garanti peixadas deliciosas no almoço do dia seguinte.
Sempre pesquei peixes pequenos. Nunca pescava sozinho. Estavam lá os dois companheiros, tenazes, Fernando e Christiano. Também eram parceiros no futebol e na escola, mas hoje não poderiam aparecer lá em casa à noite. A Rosa me bastava. E era nela que pensara o dia inteiro. Nem o futebol ocupou meu pensamento naquela tarde.
Por um momento, desviei o pensamento de minha musa e lembrei-me do velho pescador Santiago. Ele pescava peixes gigantes, mas morava numa modesta cabana. Lutou heroicamente com um espadarte maior que seu barco. Que seria pra ele botar as mãos em pequenas locas de traíras? Ele amava o mar e seus habitantes. Era um senhor admirável. Ao cair do sol, lembrava do beisibol, esporte de sua predileção. O mar é lindo e imenso. Cheio de perigos. Mas era onde aquele pescador lutava bravamente para sobreviver.
Meu riacho não era tão grande nem tão belo como o mar. Mas eu também era um pescador que não temia os perigos imanentes de meu ofício. Ao cair do sol, pensava em nosso futebol. Mas naquele dia principalmente pensava na Rosa.
_ Pessoal, vamos embora. Por hoje basta.
No tocante à divisão dos peixes éramos comunistas teóricos. Como num regime parcial de bens, o que obtivéssemos da pescaria era produto do esforço conjunto e, assim, dividíamos em partes iguais. Só quando não pegávamos quase nada mesmo é que ficava para um só de nós. Decidíamos no par ou ímpar.
_ Vamos. _ Respondeu imediatamente o Christiano.
Ele gostava de jogar bola e sabia que tinha de chegar sedo ao campo. Fernando também não se opôs. E fomos embora mais sedo naquele dia.
Cumpria-me completar a rotina do dia e daí alcançar a noite e seu bom presságio. Fui, então, ao campo. Fiz uns toques. Chutei uma bola na trave. Mas estava muito distante do que eu era. Displicente, lento e desinteressado pelo jogo. Acabei inventando uma dor de veado. Nem pus galho de folha verde no calção nem nada. Cedi a vaga para o Deci, um habitual alisador de banco do nosso futebol.
A mamãe não me foi indulgente. Tive de pegar o balde no chafariz. Fiz sem tergiversar. Queria estar livre cedo. E lá pelas seis horas estava insolitamente banhado e vestido com a melhor roupa, esperando aquela que povoara meu pensamento o dia inteiro. Estava ansioso por aquele encontro. Arrumei a mesinha com uma cadeira do lado da outra numa posição em que as pernas se tocassem. E esperei...
Lá pelas sete e dez a Rosa transpôs o batente da porta com jeito da lolita de Nabokov. Era deveras faceira. Porte cuidado. Face meiga e rosada. E o sorriso era o paraíso de ímpios e ateus. Falava com doçura e sorria no fim da sentença. Fitava o olhar intermitentemente, com um raro aspecto, desnudando-lhe a timidez. Ouvi a doce voz cumprimentando a mamãe e em seguida outra, menos aprazível, soou para minha frustração. Ela trouxera Lisa. Uma amiga dela tão inseparável quanto Fernando e Christiano de mim.
_ De que adiantou o dia inteiro dedicado a ela. Pesquei menos peixe. Não fiz sequer um gol. Arrisquei minha reputação em vão. Parece que para ela só a Matemática era coisa de interesse. Perdi completamente a motivação. Expliquei-lhe as equações com frieza matemática. As mulheres têm este dom de nos inquietar mesmo quando bem moças. Eu estava melindrado, mas era preciso disfarçar.
Recordo isso, agora, com uma saudade imensa no peito. Rosa foi meu grande amor da adolescência. A gente pensa na idade tenra que as coisas vão perdurar nessa vida. Agora sei que não é bem assim! Depois de Rosa tive vários grandes amores. De algumas nem me lembro mais. O Fernando vive hoje em São Paulo. O Christiano é advogado militante aqui do forum local. Nunca deixou o futebol, mas comprova a tese de uns que afirmam que futebol é dom e ninguém aprende, nem com muita prática. Às vezes, escrevo histórias de pescaria para me lembrar daquele tempo. Como o velho Santiago amava o mar eu amava o meu riachinho. Eu também tirava o meu sustento da pesca. Também amava as criaturinhas do riacho. Hoje amo os livros e as belas histórias. Meu irmão Mateus é professor de literatura. Quem sabe ainda vai nos contar a história das pedreiras. O Eduardo agora é do corpo de bombeiros. O papai ficou bom e é hoje um homem forte e prudente. Mamãe não pisa mais no pilão nem precisa mais buscar água no chafariz. Agora minha flor já deve está dormindo aqui no quarto ao lado com a Ana Beatriz. Estas vieram para ficar. Quando lerem essa história, minha mulher vai saber que a vida precede os livros. E minha filhinha saberá que um pescador ainda mora em mim.

Teresina, 18 de junho de 2009.
JOSÉ SOARES LIMA
Em um dia de muita saudade de Barro Duro.


domingo, 12 de agosto de 2012

SÓ PARA MEU REI

Ao melhor pai do mundo: Luiz Zuca



Este coração comovido tem muita coisa a dizer. Meu pai foi rei ! Não foi ? Claro que foi ! E era o meu herói em seu cavalo inglês. Disso eu não tenho dúvida. Enfrentou todos os lestrigões e os ciclopes. O gigante Adamastor e o Minotauro. Por mim, matou o leão de Nemeia e capturou o javali de Erimanto. Veio em seu corcel ao meu encontro, quando tive febre. E bradou abruptamente para que Pandora se calasse. Andávamos juntos em Nova Vida. Cruzava a Flor da Mescla. Não reconhecia os obstáculos para transpor o Rosário da beira do rio. Quando adoeceu me abraçou com ternura e disse que ia voltar. Regressou conforme o prometido. Aí viemos parar aqui nesse nosso Barro Duro. Assim criamos raízes, lutando sem nos acovardar. Quando todos vêm contra nós estamos unidos. Ninguém insulta só a um. Atravessamos as intempéries mantendo o olhar firme. Olhando para trás sim, mas só para nos orgulhar. O nosso reino é construído na rocha. E aqui não há disputa por poder. Nosso exército é leal. Nosso hino é o coro das crianças da rua. Meu velho lê todo dia o livro sagrado. Sabe pensar e não aceita privilégio nato de espertalhão. Não elogia facínora. Combate na solidão. A calma, a tática de guerrilha. O silêncio, sua maior forma de expressão. A alegria, o nosso reencontro. A política, o que o faz falar. É o natural e verdadeiro amigo. Nunca cerceou minha emoção. "Oh! meu velho indivisível !". Amor, respeito, ternura, alegria, paciência, concórdia, vontade de trabalhar, gentileza, o trato inefável. Por que não consigo ir embora? Ora, não me façam rir ! Os vícios que traz inda nos diverte. É um senhor formidável. Perde quem não o conhece. Eu tive o privilégio de ser súdito desse rei justo. A vida me compensou por ter deixado umas pedras no caminho. Mas nós as quebramos com nossa marreta. E os paus, partimos com nosso machado. Limpamos o mato com a roçadeira e nada subsiste ao nosso amor. Agora me recomponho e peço desculpas ao leitor por ter tergiversado tanto com as palavras. É que só a excepcionalidade traduz melhor o meu pai. Meu Luiz, rei Luiz. A bênção desse seu filho que lhe tem muita admiração e amor. E digo: É impossível ser como o senhor.        

terça-feira, 7 de agosto de 2012

A PAIXÃO DOS OPRIMIDOS




O bumba meu boi no Maranhão e a eleição municipal em Barro Duro têm em comum a paixão dos oprimidos. Existe uma gente que é o sangue e a alma dessas manifestações culturais e políticas, respectivamente. O povo vai à rua com bandeiras. Cantam e sorriem as alegres turbas. Uns se abraçam no calor fraternal. Acreditam ali que realmente os homens são iguais e que não havia motivo para cerimônias, uma vez que a vitória trará a alegria para toda a cidade. No Bumba meu boi, os tambores ressoam e a gente acompanha a batucada ao sabor do São João da Barra. Que momento de êxtase! As índias rodopiam com harmonia a dança aprendida de seus pais. São leves e faceiras e sensuais e causam frenesi. Aqui não importa quão dura é a vida. A existência se reduz à paixão que o maranhense pobre tem por sua cultura. E é essa gente de aspecto sofrido que faz a festa maior do Maranhão. NA ELEIÇÃO DE BARRO DURO os excluídos de toda sorte de poder são quem põem a alegria na rua. Defendem com unhas e dentes e cantos de louvor uma bandeira que definitivamente não lhes pertence. Se alegram com quem lhes despreza. E beijam e abraçam quem na verdade lhes têm asco, mas cujo interesse pessoal faz dominar qualquer asco. As pessoas mais simples de Barro Duro, que sempre fizeram as multidões nos comícios municipais nunca foram respeitadas pelos arrumadinhos privilegiados da cidade. Também a vitória na eleição nunca significou melhoria na vida da população. Os mais pobres nunca foram prioridade em Barro Duro. É sempre uma classe média local que se ajeita em qualquer administração. E o chamado "povo" espera a próxima campanha para levar a bandeira tal qual o animador de bumba meu boi na noite formidável de São João aqui deste, também terrível, Maranhão. Mas os oprimidos daqui como os daí têm paixão pela bandeira que carregam. Pensam resignados que os bens sociais existem para manter o privilégio de poucos. E consciência, caros leitores, é coisa muito fugidia. E anda um tanto ausente em nosso lugar. Passei uma semana em Barro Duro em plena campanha eleitoral. Teria de ser mil vezes mais ingênuo para me alegrar com o que vi. O quadro é realmente triste e estarrecedor. Vou votar sem nenhuma cresça em melhora imediata. Convido os verdadeiros filhos de Barro Duro para reagir e fazer algo por nossa terra. É estranho, porque os que mais sofrem parecem felizes, mas é um mero efeito da manipulação das massas. Pobre do oprimido que vive de fortalecer o opressor. Deus salve o nosso ingênuo Barro Duro.