segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O MENINO E O RIACHO






A meu irmão Manoel



Quando eu tinha quinze anos li o livro “O velho e o mar” do escritor Ernest Hemingway de Illinois. Era a história de um velho pescador de grandes peixes. Chamava-se Santiago e tinha muita dignidade. Fiquei encantado imaginando o grande espadarte que ele pescara e comovido com a bela história que lera. Em 1954, Hemingway ganhou o prêmio Nobel de literatura. Dizem que muito em razão daquela história de pescador. Muitos anos depois, li que o mesmo escritor dissera uma vez que se a gente quiser ser escritor, precisa viver os nossos futuros livros.
Assim, já vivi esta história que agora escrevo, há muitos anos. Foi no tempo em que eu era pescador. Nunca tive barco nem conhecia o mar. Minha pescaria era no riacho com o Fernando e o Christiano. Jamais pesquei por diversão. Essa atividade era parte da nossa luta diária pela sobrevivência. Meu pai estava de repouso após a terceira cirurgia no ureter, que é cada um dos dois canais que conduzem a urina de cada rim à bexiga. Meu irmão mais velho, o Mateus, trabalhava que nem um condenado das galés para sustentar a gente. O Eduardo era pequeno e mamãe cuidava dele e ia buscar água no chafariz.
_ Já tá na hora, Mateus.
Era a mamãe acordando o pobre do Mateus para o suplício diário dele naquela terrível pedreira. Ele era o meu herói. Não só por que me alimentava, mas porque era mesmo. Trabalhava o dia inteirinho e à noite ia pra escola e ainda era um dos melhores alunos. Nem é preciso falar de sua honestidade, era o exemplo para todos os garotos do seu tempo. Foi o maior velocista de nossas cercanias. No futebol, era o mais veloz do seu time e fazia sempre muitos gols. Era o orgulho de meu pai, que não estava podendo trabalhar naquele tempo. Em verdade, era o orgulho de nós todos.
Ele me levava para o campo no domingo. Fantástico! Como ele conseguia conduzir tão bem a bola
naquela velocidade superior? Corria o jogo todo. Lançava, driblava e fazia gol. Quem o visse na tarde de domingo naquela correria não imaginava que, cinco horas da madrugada, a mamãe estava lá, impreterivelmente:
_ Mateus, já está na hora, meu filho.
Depois de uma hora que o Mateus tinha saído era a minha vez:
_ Acorda, Carlito. Antes que a fila aumente no Chafariz.
Tinha de levantar e ainda ir buscar um balde d'água no Chafariz. Para mim era uma tarefa penosa para realizar às seis horas da manhã. Eu não tinha a disposição do Mateus para o trabalho. Mas também não ousava desconsiderar uma ordem enfática da mamãe. Era sanção na certa. Chegando no chafariz já encontrava o Fernando e o Christiano na fila.
_ E aí, que hora nós vamos hoje?
_ Depois do almoço.
Todo dia a gente só ia mesmo depois do almoço, mas era o nosso jeito de dizer bom-dia. Naquele tempo a gente não se tratava por doido, maluco ou coisa que o valha.
_ Lá vem ela, Carlito.
Era a Rosa, minha flor de laranjeira! A menina mais bonita da escola e de minha rua.
_ Oi, Carlos, tudo bom?
_ Tudo!
Só ela e a professora Esther me chamavam assim de Carlos. Para os de casa e a patota eu era o Carlito. Como já era bonita! Éramos da mesma idade e devíamos ter apenas uns doze anos naquela época. Eu logo arrumava um pretexto para puxar conversa.
_ Rosa, você respondeu a tarefa de Matemática?
O safado do Fernando já me olhava com censura. Sabia que eu era o melhor da turma em Matemática e estava tirando proveito daquilo para me dar bem com a gata. A Matemática é o caminho mais curto para o coração das garotas bonitas. O fato é que eu tinha de angariar aquela simpatia. E não ia ser com minhas habilidades de pescador. Bendita Matemática!
_ Pra falar sinceramente, não fiz ainda!
_ Passa lá em casa à noite que a gente faz juntos.
_ Será ótimo.
_ Certamente.
_ Então às 7h.
_ Pra mim está bom.
_ Pra mim também.
Aquele pequeno encontro, embora de estudos, era motivo suficiente para fazer aquele dia feliz. A Rosa era muito discreta. Parecia uma mocinha da burguesia conservadora. Vestia-se com simplicidade, mas com muito jeito. A mãe tinha uma banca de fruta no mercado e o pai estava tentando a vida em São Paulo. Era uma família admirada por todos de nossa rua.
Voltei logo com o balde cheio. Tomei aquele banho de isope e fui à escola.
A escola ficava perto de casa. Não demorava quase nada chegar lá. Sempre ia sozinho e só encontrava o pessoal no portão, antes da entrada. O badalo do chocalho tinia sete em ponto. Todo mundo corria para pegar as melhores carteiras, mas o local do assento era consignado. Eu sentava na última carteira da fila central. Para mim era muito perigoso dar as costas aos inimigos. E nessa idade até os grandes homens do futuro são perversos. Coisas do tempo. Coisas insólitas do tempo!
Naquele dia a aula para mim não fez muito sentido. Queria logo que chegasse a noite. “A noite com os seus sortilégios.” Enquanto a professora explicava a matéria, eu tecia meu devaneio. “ Se ela permitir eu vou beijá-la. Não importa hoje a pescaria, a pelada do fim da tarde nem o outro balde de água que ainda tenho de pegar no chafariz no fim da tarde.” Eu quero é a Rosa. Eu quero a poesia;

Oh! Minha Rosa,
Sem teu amor
Minha poesia é prosa
Meu dia é triste
Meu sonho pobre
Meu peixe podre
Não faço gol
E, no entanto,
Tudo é feliz
Se me entregares
O teu amor.

Nesse enternecimento a aula chegou ao fim. Agora é arrancar as minhocas. Pegar o facão. Almoçar e ir à pescaria. Mal engoli meu bocado, o Christiano e o Fernando já estavam lá em casa.
_ Vocês já comeram?
Aqueles moleques tinham mesmo ânsia por pescar.
_ Ora! Você é que passa um ano para ficar pronto. Por isso, só estamos chegando atrasados
no campo à tarde.
Essa preocupação era do Christiano. O pobre era tão ruim de bola que precisava formar a parelha dele. Se não o fizesse ninguém o escolheria. Já eu e o Fernando não precisávamos ter essa preocupação, uma vez que éramos os primeiros a ser escolhidos na formação das barreiras. E, mesmo quando chegávamos depois, tinha sempre um pivete para substituir.
Nossa pescaria compreendia um trajeto de aproximadamente oito quilômetros. mas Caminhávamos dois quilômetros e meio para alcançar a passagem do riacho antes de fazer esse percurso. Era o nosso itinerário diário. Após a escola e antes do futebol. Para nossa odisseia, dispúnhamos de baladeiras, facões e anzóis. Estes só para os porões e lagoas ainda com muita água. A baladeira para eventuais pássaros nas árvores ciliares. Para nossa pesca de riacho, o instrumento de maior utilidade era mesmo o velho facão Tramontina. O colina do papai. Com ele vencíamos os pequenos peixes que se refugiavam embaixo das cuncas caídas das palmeiras de babaçu. Cortávamos as palhas de coco para confeccionar os capotes, que são instrumentos de arrasto nas lagoas com pouca água. Sempre havia algumas lagoas formadas quando o riacho transbordava. As cuncas também serviam para a prática do arrasto, mas só quando a água da lagoa baixava completamente. Nesse tempo, também fazíamos o repisar das águas para baldeá-las e eliminar o seu oxigênio. Assim, os peixes necessitavam ir à superfície, momento em que aproveitávamos o ensejo para abatê-los. Com o facão ainda fazíamos as enfieiras e cortávamos o timbó para se embeber os peixes. Outra prática de pescaria assaz eficiente no riacho era capturar o peixe na loca, que é uma toca subaquática. Isso fazíamos direto com as mãos, sem saber o que encontraríamos realmente. Mas o que eu buscava eram as traíras. As árvores mais frondosas e de raízes maiores formavam o esconderijo para os melhores peixes. Arriscava-me com as duas mãos e muitas vezes garanti peixadas deliciosas no almoço do dia seguinte.
Sempre pesquei peixes pequenos. Nunca pescava sozinho. Estavam lá os dois companheiros, tenazes, Fernando e Christiano. Também eram parceiros no futebol e na escola, mas hoje não poderiam aparecer lá em casa à noite. A Rosa me bastava. E era nela que pensara o dia inteiro. Nem o futebol ocupou meu pensamento naquela tarde.
Por um momento, desviei o pensamento de minha musa e lembrei-me do velho pescador Santiago. Ele pescava peixes gigantes, mas morava numa modesta cabana. Lutou heroicamente com um espadarte maior que seu barco. Que seria pra ele botar as mãos em pequenas locas de traíras? Ele amava o mar e seus habitantes. Era um senhor admirável. Ao cair do sol, lembrava do beisibol, esporte de sua predileção. O mar é lindo e imenso. Cheio de perigos. Mas era onde aquele pescador lutava bravamente para sobreviver.
Meu riacho não era tão grande nem tão belo como o mar. Mas eu também era um pescador que não temia os perigos imanentes de meu ofício. Ao cair do sol, pensava em nosso futebol. Mas naquele dia principalmente pensava na Rosa.
_ Pessoal, vamos embora. Por hoje basta.
No tocante à divisão dos peixes éramos comunistas teóricos. Como num regime parcial de bens, o que obtivéssemos da pescaria era produto do esforço conjunto e, assim, dividíamos em partes iguais. Só quando não pegávamos quase nada mesmo é que ficava para um só de nós. Decidíamos no par ou ímpar.
_ Vamos. _ Respondeu imediatamente o Christiano.
Ele gostava de jogar bola e sabia que tinha de chegar sedo ao campo. Fernando também não se opôs. E fomos embora mais sedo naquele dia.
Cumpria-me completar a rotina do dia e daí alcançar a noite e seu bom presságio. Fui, então, ao campo. Fiz uns toques. Chutei uma bola na trave. Mas estava muito distante do que eu era. Displicente, lento e desinteressado pelo jogo. Acabei inventando uma dor de veado. Nem pus galho de folha verde no calção nem nada. Cedi a vaga para o Deci, um habitual alisador de banco do nosso futebol.
A mamãe não me foi indulgente. Tive de pegar o balde no chafariz. Fiz sem tergiversar. Queria estar livre cedo. E lá pelas seis horas estava insolitamente banhado e vestido com a melhor roupa, esperando aquela que povoara meu pensamento o dia inteiro. Estava ansioso por aquele encontro. Arrumei a mesinha com uma cadeira do lado da outra numa posição em que as pernas se tocassem. E esperei...
Lá pelas sete e dez a Rosa transpôs o batente da porta com jeito da lolita de Nabokov. Era deveras faceira. Porte cuidado. Face meiga e rosada. E o sorriso era o paraíso de ímpios e ateus. Falava com doçura e sorria no fim da sentença. Fitava o olhar intermitentemente, com um raro aspecto, desnudando-lhe a timidez. Ouvi a doce voz cumprimentando a mamãe e em seguida outra, menos aprazível, soou para minha frustração. Ela trouxera Lisa. Uma amiga dela tão inseparável quanto Fernando e Christiano de mim.
_ De que adiantou o dia inteiro dedicado a ela. Pesquei menos peixe. Não fiz sequer um gol. Arrisquei minha reputação em vão. Parece que para ela só a Matemática era coisa de interesse. Perdi completamente a motivação. Expliquei-lhe as equações com frieza matemática. As mulheres têm este dom de nos inquietar mesmo quando bem moças. Eu estava melindrado, mas era preciso disfarçar.
Recordo isso, agora, com uma saudade imensa no peito. Rosa foi meu grande amor da adolescência. A gente pensa na idade tenra que as coisas vão perdurar nessa vida. Agora sei que não é bem assim! Depois de Rosa tive vários grandes amores. De algumas nem me lembro mais. O Fernando vive hoje em São Paulo. O Christiano é advogado militante aqui do forum local. Nunca deixou o futebol, mas comprova a tese de uns que afirmam que futebol é dom e ninguém aprende, nem com muita prática. Às vezes, escrevo histórias de pescaria para me lembrar daquele tempo. Como o velho Santiago amava o mar eu amava o meu riachinho. Eu também tirava o meu sustento da pesca. Também amava as criaturinhas do riacho. Hoje amo os livros e as belas histórias. Meu irmão Mateus é professor de literatura. Quem sabe ainda vai nos contar a história das pedreiras. O Eduardo agora é do corpo de bombeiros. O papai ficou bom e é hoje um homem forte e prudente. Mamãe não pisa mais no pilão nem precisa mais buscar água no chafariz. Agora minha flor já deve está dormindo aqui no quarto ao lado com a Ana Beatriz. Estas vieram para ficar. Quando lerem essa história, minha mulher vai saber que a vida precede os livros. E minha filhinha saberá que um pescador ainda mora em mim.

Teresina, 18 de junho de 2009.
JOSÉ SOARES LIMA
Em um dia de muita saudade de Barro Duro.


2 comentários:

  1. Simplesmente genial o texto. Parabéns!

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  2. ... Amizade (trechos) William Shakespear

    Há certas horas, em que não precisamos de um Amor...
    Não precisamos da paixão desmedida...
    Não queremos beijo na boca...
    E nem corpos a se encontrar...

    Há certas horas, quando sentimos que estamos pra chorar,
    que desejamos uma presença amiga, a nos ouvir paciente,
    a brincar com a gente,
    a nos fazer sorrir...

    Alguém que ria de nossas piadas sem graça...
    Que ache nossas tristezas as maiores do mundo...
    Que nos teça elogios sem fim...
    E que apesar de todas essas mentiras úteis, nos seja de uma sinceridade
    inquestionável...

    Que nos mande calar a boca ou nos evite um gesto impensado...
    Alguém que nos possa dizer:
    Acho que você está errado, mas estou do seu lado...

    Ou alguém que apenas diga:
    Olá amigo...sim,eu estou on line...
    ...afinal,há momentos,que precisamos contar o resumo do dia para alguem que dele não faz parte,mas,como poucos compreende e diz coisas que nos fazem viver melhor com aqueles que estão conosco cotidianamente.



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