domingo, 16 de junho de 2013

UNS PEQUENOS COLIBRIS




Domingo de solidão é um dia certo para pequenas lembranças. Por isso, agora me lembrei de um pé de roseira que minha mãe mantinha no quintal de nossa casa. Para ele concorriam, no pós-amanhecer, um casal de colibris sedentos por um néctar de vida. No sertão, a gente diz que esse passarim beija a flor, quando em verdade colhe o mel para viver. Por sua atividade, virou beija-flor, assim como a outro pássaro a lógica popular deu o nome de pica-pau. Para melhor servir a propósitos satíricos, o poeta Gregório de Matos chamou nosso pássaro de pica-flor. Lembro-me que, sob o sol levantando, eu via uns colibris parados no ar numa beleza sem igual. Esse pássaro-abelha, que a gente, na infância, abatia sem piedade para comer o coração pulsando e ficar coqueiro na baladeira, diz mais sobre a minha vida do que uma centena de livros áridos que já li. Lembrar daquele casal de colibris me faz compreender a alegoria de Esopo de que o mais forte sempre tem razão, mesmo não tendo, como na fábula do lobo e o cordeiro. Não importa a beleza encantadora de colibri. Não se detém o algoz em face do pequeno. Lutar com um igual é um desafio ético que não seduz muito os crápulas. E às vezes a gente se desgasta tentando fazer melhor. Os colibris voavam velozes. E eram belos, inocentes e bons. Eu tentei por semanas. Atirei um sem fim de pedras de baladeira. Um certo dia de que hoje me envergonho matei o primeiro. No mesmo instante o outro se aproximou como que se oferecendo para morte. Então, matei o segundo beija-flor. Aí saí me sentindo grande como umas pessoas que conheço, que perseguem os pequenos até o fim, com a diferença de que nunca se envergonham.                 

sexta-feira, 14 de junho de 2013

NA BEIRA DO RIO





Uma história é apenas uma história. Esta é a minha. O rio do meu lugarejo enchia até a vazante de banana de meu pai, quando o inverno era forte. Eu descia com o meu irmão Francisco para ver os remansos nas águas. Na beira do rio o cheiro de goiaba se misturava ao cheiro da terra após a chuva. Eu pisava na beirinha e segurava firme na goiabeira. Se caísse, o rio tragava sem piedade. Minha mãe sempre ensinou que água não tem cabelo. Rio não tem cabeça e menino não tem juízo. Eu me arriscava sem temer perder o futuro. Minha arma era uma baladeira de soro. Meu patoar estava cheio de pedras redondas da piçarra graúda da beira do riacho da sussuarana. Eu queria ser um guerreiro. Saía correndo na mata sem temer guaxinim. O rio cheio era muito perigoso e a mata fechada também ocultava perigo. Mas a gente amava demais ver os galhos das árvores descendo velozmente nas águas. As águas quando subiam deslizavam com mais leveza. Compondo-se com o vento, traziam aos nossos olhos o encanto que me completava o dia. Muitas vezes vi esse espetáculo belíssimo. Voltava para casa extasiado. Ficava ansioso pela próxima chuva forte. Torcia para tudo combinar. Tudo só era pleno quando o chão molhado exalava seu cheiro agreste, a goiaba madurava no pé sem ninguém tirar e os remansos rodopiavam as impurezas da enchente trazendo fascínio aos olhos. O mundo todo que eu conhecia naquele tempo ficava perto. Lá de minha casa já ouvia o ronco do rio enchendo. Quase tudo era perfeito para mim. Apenas sofria quando morriam ovelhas de meu pai. Perdia-se muita ovelha no inverno. Umas precipitavam-se nas grotas, outras feriam-se nos gravetos, bamburrais e contraíam bicheiras intratáveis. A gente precisava dos carneiros para o nosso sustento. Papai os vendia na feira da cidade. Depois comprava os mantimentos para o lar e, quando dava, passava na loja do tio Nerindo e comprava uma fazenda de tecido para dona Ambrosina fazer um vestido para mamãe. A vida era assim na beira do rio, até que um dia veio a doença no ureter do papai e nos arrancou da beira do rio.     

quarta-feira, 12 de junho de 2013

ELOGIO A SÁ BATISTA



A polícia jogou gás lacrimogêneo. As lágrimas rolaram do olho do estudante, mas não era choro. A polícia então atirou com balas de borracha e vazou o olho do estudante. Nada. A polícia arrastou o estudante no asfalto quente do sol de Teresina, mas ele não desistiu de sua luta. Esta gente inexplicável que tem um coração guerreiro e é tão necessária à república sempre foi desprezada no Brasil. Essa gente bonita que tem um ideal de lutar contra as injustiças sempre vai resistir. O burguesinho vê pela televisão e não entende, mas essa gente está defendendo o Brasil. Pude divisar entre a multidão, levando pancada da polícia, o meu professor de Filosofia Sá Batista. Aquele homem tem amor pela sociedade e não desiste nunca deste país cretino. A causa agora é o aumento abusivo no valor da tarifa da passagem de ônibus urbano intramunicipal. Ele sempre luta em defesa dos que não sabem lutar. É radical demais. É fascinante. É curador espontâneo dos grupos populares. Lembro ainda ele chegando com seu chinelão Samoa, dizendo que o amor se compra e que o governo só cuida de si mesmo. É de luta, mas sempre bem humorado. É o Sá Batista das greves vermelhas, das manifestações nas praças. Voz dissonante do acordo imoral. Já faz tanto tempo, meu professor! Você me ensinou a ver o Brasil. E eu vi aquele soldado arrastar o senhor. Eu vi que o senhor não corre e por isso o governo acha que tem de apanhar. Mas o senhor suportou a pancada para assegurar o direito de o filho do soldado pegar o ônibus para a escola. Eu me orgulho de você, Professor. A dor não é só sua. A honra é sua. E a Frei Serafim cobriu-se de fumaça negra. E o sol fez um arrebol bonito. E eu espero poder ensinar minha filha o nome dos homens que defendem o povo do Piauí.

terça-feira, 11 de junho de 2013

NA PRAÇA DOS CORREIOS




Hoje acordei com uma imensa saudade de minha namorada do Dirceu. A gente se encontrava na praça dos correios, após a aula no Pires de Castro. Ela tinha o cabelo preto de Iracema. Beijava forte com indisfarçável frenesi. Eu era louco por ela. Ela sabia, mas fazia conta de meu amor. Não tinha ardil, era simples. E eu era feliz com aquela menina do Dirceu. O Jhonson naquele tempo já era meu melhor amigo. Ele flertava com a amiga de minha namorada. A gente vez ou outra sequer ia à escola. Antecipava-se logo a melhor parte do dia. A conversa era sempre interessantíssima, mas eu não prestava atenção. Só olhava a boca e o sorriso de minha linda namorada. Por causa desta saudade, hoje, eu queria ser poeta. Mas queria ser um poeta triste para fazer uma poesia de pesar. Nela eu queria colocar as dores que nunca tive. As dores inventadas para um amor que não aconteceu. Um amor inquietante que varria tudo inclusive as lembranças doces. Um amor que esqueceu de existir. Hoje eu queria ter uma lembrança mais forte daquele tempo no Dirceu. Tempo de mistério em que por pouco não tive um grande amor. Hoje queria ter outra saudade, mas só foi possível lembrar de uns cabelos de Iracema que também amei, há muito tempo, na praça dos correios no Dirceu.