quarta-feira, 28 de agosto de 2013

FIM DE ANO


Há tantas coisas a pensar em uma madrugada chuvosa que uma crônica parece pouco. São cinco horas agora. Cai uma chuva delicada. O galo não canta. Ninguém toca o silêncio senão a água no telhado. A vida vista de dezembro. A mamãe em Itaquaquecetuba com a Maria e o novo rebento. O Francisco não vem mais em janeiro. O Edílson casou, mas o cônjuge não é digno de nota. O Manoel, que tanta falta me faz neste final de ano, também não vem ao Piauí por agora. O cotidiano não é tão simples. Só permanece mesmo a mudança vista pelo filósofo Heráclito. O Magno vai para o Rio Grande do Sul. São Pedro tem um novo prefeito. Aline e eu voltaremos ao Corda e Mearim, nossa mesopotâmia. O Valdinar e a Tatiana agora moram em Minas. As histórias se espalham, mas os pensamentos nos ligam. Tanta vida a pensar neste instante que uma crônica parece pequena. Foi tudo igual com os homens. A partida em janeiro, o esforço colossal no trabalho, as lembranças da terra natal. Agora a cerveja do moderno Baco. O grito de afirmação. Por um instante não ser oprimido, mas burguês. Até que o novo ano vem e com ele a rotina fatídica de Sísifo. Rolai pedra impiedosa! Um sorriso largo sempre vai bem em dezembro. Os encontros alegres como introito de partida. Como disseram Teixeira e Sater “ um dia a gente chega e em outro vai embora”. Assim, é mesmo hora da consoada familiar. Feliz do que traz de bom. Triste do que deixa de saudade. Já passou o show de Roberto Carlos. A ceia de natal. Vieram os confrades que tiveram de vir de São Paulo. Agora só resta a corrida de São Silvestre para o ano acabar. O dia raiou agora. Muita coisa precisa ser feita. Quem sabe realizaremos um pouco mais no ano vindouro. Que o ano novo seja verdadeiramente feliz!



A LAGARTA E A BORBOLETA



A única coisa constante da vida é a mudança, asseverou Heráclito há séculos. O eclesiástico também tece sábias palavras acerca do esvair-se da vida. Então, tenho pouco a dizer. Mas esta lagarta que passa lentamente merece umas palavras. É realmente um ser frágil. Desses que temos um desejo invencível de calcar com os pés. Pisar e vê-lo se extinguir enquanto é feio, lento e extremamente fácil de ser abatido. Se tiver as condições propícias, um dia esta lagarta será uma borboleta. Despertará olhares e interesse. Poderá voar. Pousar nas flores. Bater asas coloridas. Ser tema de poesia. Transformar-se em um chinês. Sendo lagarta ainda, este pequeno ser tem um grande caminho a transpor. E certamente encontrará lestrigões, ciclopes, meninos e os terríveis homens, em seu caminho. Às vezes, chegar a crisálida já é uma grande vitória. Ser ninfa do porvir. As borboletas são lindas, mas, não raro, sonhos intangíveis. É preciso ter mais que talento e esforço para ir de lagarta a borboleta. Participam também desse caminho as impassíveis circunstâncias da vida. Estas que verdadeiramente apresentam os vencedores e os vencidos. Olhando esta lagarta tão alheia. Lembro-me das dores inevitáveis de meus irmãos de nossa terra. Tantos morrerão lagartas! Tanta vida que poderia ter sido e que não foi, tenro Manuel. A impossibilidade das coisas possíveis que tanto me aborrecem. Quantas borboletas medíocres em minha terra! Legatárias de circunstâncias injustas que tanto facilitam o caminhar dos frívolos. Eu tenho, porém, este deserto. Nele o esforço é sempre pessoal. Jeová ofereceu a vida. Cristo, o exemplo. A mãe, o pai e os irmãos ofertaram o amor sem o qual não adianta partir. E assim a vida se compõe.




BRISA



Só quando subimos a montanha e percebemos que nada de bom aconteceu, acreditamos que a razão de tudo estava mesmo no caminho. Eu estive em São Paulo no natal de 1996. Era a primeira vez que eu subia aquela montanha. Não estava muito feliz de estar ali. Toda a vida que conhecia havia ficado para trás. Talvez se tentasse compor um poema naquele natal, o primeiro verso seria assim: “vou-me embora para Barro Duro”, uma vez que o imaginava, como a Pasárgada do poeta Manuel Bandeira, o espaço onde eu podia realizar tudo aquilo que o presente de então negava. Parece que acreditei naquela história de que “ aqui faz calor, mas também tem brisa”. É uma ilusão pensar assim. Hoje tenho saudade de São Paulo. A velha Pauliceia ainda desvairada. Da estação Armênia, Ponte Pequena, onde vi a vida ser tão dura. A banca de revista: meu trabalho, minha leitura, minha dor. O vendedor de café, o Ceará, grande amigo, que provavelmente jamais o verei novamente. O taxista Osvaldo não deixava a noite ficar melancólica. Detestava os tenros e o estúpido Magrão, seu concorrente de praça. Um velho advogado aposentado ia me contar as últimas da política. Incrível, mas parecia o noticiário mais recente. Sempre várias bandeiras particulares mascaradas por uma grande bandeira pública. E tinha os garçons das casas chiques da noite paulistana. Um pizzaiolo que fazia a caridade de nos oferecer uma fatia de sua pizza deliciosa. E os moradores de rua a nos dizer que há sempre uns mais infelizes ainda. Queria voltar para o Piauí ainda que no lombo de uma onça como pensara o compositor maranhense. Foi possível realizar este pequeno desejo. Mas nunca o de fazer tudo o que eu quis. Às vezes, em junho, quando faz um pouco de frio aqui no sítio, lembro-me daquelas noites na avenida Santos Dummot com a Tiradentes e a avenida do Estado. Faziam ali o meu triângulo na Armênia. A noite era grande demais. Pensava em tudo. Lia as revistas. E queria que a vida fosse diferente. Ao romper da aurora, pegava o ônibus do Jardim América e seguia para Itaquaquecetuba dormir o dia inteiro na casa de minha querida irmã Maria. O dia para quem trabalha à noite é o tempo que não existe de Santo Agostinho. Parecia o mito de Sísifo, que consistia em passar o tempo todo a rolar uma grande pedra para o píncaro de uma montanha para em seguida ao arremesso voltar à fatídica rotina. Mas algumas emoções vivi naquele tempo. Quando fui ao viaduto do Chá ver o teatro municipal. Fiquei paralisado, “ foi aqui...! Mário de Andrade e sua turma”. E a arte não seria mais a mesma. Eu não seria mais o mesmo. O grande pássaro da liberdade por ali passou. O grande condor dos Andes. E eu vi. No Largo São Francisco, a gravura de honra aos poetas : “ Aqui estudou Castro Alves”, “ Aqui estudou Álvares de Azevedo”. A Faculdade de Direito que também viu passar Miguel Reale. E eu só queria voltar para o meu riacho. Banhar numa água fria. Conviver perto dos que não são eminentes, mas sabem cativar com as próprias vidas. Pablo Picasso uma vez se referindo ao pintor francês Paul Cézanne disse “ Ele foi meu único mestre”. Fico feliz porque comigo não foi assim. Sempre tive muitos mestres na arte de escrever. Mas não só os grandes me fascinam. Admiro os mestres da vida com simplicidade. Aqueles que não procuram um fim, mas um caminho. É assim que encontramos um pouco de brisa. E, por isso, as coisas mais importantes podem às vezes não constituir nossa prioridade. Às vezes a cidade mais importante do país não é a mais importante para nós, naquele momento. Só o doce caminho do amor pode satisfazer nosso vazio de significado. Eu tenho mil razões para dizer não, mas eventualmente vou dizer sim. E sei que esse dia valerá a pena. Vamos então curtir a brisa.



quinta-feira, 15 de agosto de 2013

SÔ NEGO

a poetisa Pepita

A vida é um evento complexo. Quando o navio-negreiro foi nos buscar na África, o vovô não queria vir. “Mas se o velho arqueja e no chão resvala, ouvem-se gritos e o chicote estala”, Castro Alves não me deixa mentir. Eu queria viver na Noruega, ser bonito e ter estatura escandinava. Eu queria ter cabelos abundantes e também queria ter inteligência além da média vulgar. Não queria ter esofagite nem governo corrupto no país. Todavia, nasci foi numa casinha de sapê, com o auxílio diligente da parteira mãe Norata, que, com a tesoura da mamãe cortar tergal, cortou meu umbigo e botou fumo cuspido para sarar o local. Quando chorei meu tio Dedé perguntou a parteira lá do terreiro: “é branco ou é preto?” E a resposta veio como uma frustração geral, “é nego”. Daí passei a viver como um nego neste mundo que não gosta dos fio de mãe-áfrica. Meu primeiro apelido recebi em casa mesmo, era Sebo Preto. Depois os vizinhos passaram a me chamar pela alcunha de Tinga, que muito tempo depois fui saber que significava urubu. A adolescência de nego é “um Deus nos acuda”. Às vezes a menina até quer, mas o pai logo diz: “se você namorar aquele nego eu te mato”. Melhor a filha morrer do que casar com nego. E quando a gente fica adulto vai ser um nego na universidade. Começa a conhecer Mandela, Bob Marley e João do Vale, nosso irmão. Passa a ser chamado de nego pedante, exibido. “Esse nego só quer ser intelectual, ô nego bom duma foice”. Mas “Balança, nego Baia, a mamãe Isabel já aboliu a escravidão”. Sô nego de nascença. É duro ser nego nesse nosso convívio. A gente não tem sequer vinte por cento do nosso valor ontológico reconhecido. A gente tem de aprender a se interiorizar como ensinou o mestre Jesus. A reconhecer-se para não depender de apreciações viciadas de outrens. O belo da vida é não se esconder da chuva. Manter o sonho grande de Martin Luther King Jr. no temporal, sem temer olhar cerceador. Sem jamais se intimidar em face do outro. Sem precisar de aprovação de ninguém. Viva Marcos França artista espetacular. Viva Gerô voz forte do Maranhão. Viva Gil. Viva a poeta Pepita, rainha do Mov-Arte, esperança dos que precisam acreditar nas pessoas. Ser nego e fazer a vida ter sabor é uma arte. Eu queria na vida estar do lado dos mais fortes, mas não tem jeito. Queria ser aceito pelo meu valor total. Queria ter privilégios. Dinheiro para viajar o mundo. Queria tanta coisa nessa vida! Mas minha parteira informou que sô nego. E nego, admirável Pepita, tem de lutar todo dia para ser feliz. Não há tempo para dar ouvidos às tolices dos que nos desprezam. A gente tem de trabalhar duro. A gente tem de estudar sempre. A gente não pode se dar ao luxo de ser incompetente. Agora, minha forte amiga, entendo por que somos negros. Ser nego não é pra qualquer um.


sábado, 3 de agosto de 2013

NA NORUEGA NÃO TEM LAMBU




Uma vez eu peguei uma lambu na arapuca. Foi um dia muito feliz. Eu só precisava daquilo no meu dia, mais nada. Foi na beira do riacho, próximo à vereda que dá no pé de pitomba da Santa Maria. Saí veloz para vender o pássaro, vivo, ao seu Raimundo Elói da Pousada. A venda era certa e o que fazer com o dinheiro também, comprava dindim de buriti na dona Mundica e comia com pão da padaria do Chico Bodim. Naquele tempo, eu só usava calção de elástico, sem camisa. A minha casa ficava na periferia mais longínqua. Morávamos em uma casa de taipa e chão batido de cepo, coberta de palha de coco babaçu. A porta da casa era de talo de buriti. Meu prato era uma lata de goiabada vazia, igual a que o Buti fazia de pandeiro no ponto de ônibus. Água, a gente pegava no chafariz. Roupa, a gente lavava no açude. Na noite, luz de lamparina. Na rua, plena escuridão. Não podia imaginar, naquele tempo, que, na península escandinava, o sol brilhava todo tempo no verão. Que na Noruega a inflação é 2% ao ano e não existe lá um só analfabeto; que em Oslo a qualidade de vida é excelente; que o índice de desenvolvimento humano de um país pode chegar a 0,955; que um povo pode ser culturalmente pacífico e que corrupção no governo não é uma coisa natural. Os governos do Brasil, do Piauí e do Maranhão lutam constantemente para nos convencer que a miséria e a ignorância são uma fatalidade nos nossos "tristes trópicos". Eu até poderia acreditar que não tem jeito, se não existisse a Noruega. Se um operário corrupto não ficasse milionário, em apenas oito anos no governo. Se ainda fosse ingênuo como em 1985. Lembro-me de um tempo em que eu precisava de tão pouco para ser feliz. Mas hoje desconfio até das virgens, quanto mais dessas prostitutas assaz experimentadas da política do Brasil.