quinta-feira, 15 de agosto de 2013

SÔ NEGO

a poetisa Pepita

A vida é um evento complexo. Quando o navio-negreiro foi nos buscar na África, o vovô não queria vir. “Mas se o velho arqueja e no chão resvala, ouvem-se gritos e o chicote estala”, Castro Alves não me deixa mentir. Eu queria viver na Noruega, ser bonito e ter estatura escandinava. Eu queria ter cabelos abundantes e também queria ter inteligência além da média vulgar. Não queria ter esofagite nem governo corrupto no país. Todavia, nasci foi numa casinha de sapê, com o auxílio diligente da parteira mãe Norata, que, com a tesoura da mamãe cortar tergal, cortou meu umbigo e botou fumo cuspido para sarar o local. Quando chorei meu tio Dedé perguntou a parteira lá do terreiro: “é branco ou é preto?” E a resposta veio como uma frustração geral, “é nego”. Daí passei a viver como um nego neste mundo que não gosta dos fio de mãe-áfrica. Meu primeiro apelido recebi em casa mesmo, era Sebo Preto. Depois os vizinhos passaram a me chamar pela alcunha de Tinga, que muito tempo depois fui saber que significava urubu. A adolescência de nego é “um Deus nos acuda”. Às vezes a menina até quer, mas o pai logo diz: “se você namorar aquele nego eu te mato”. Melhor a filha morrer do que casar com nego. E quando a gente fica adulto vai ser um nego na universidade. Começa a conhecer Mandela, Bob Marley e João do Vale, nosso irmão. Passa a ser chamado de nego pedante, exibido. “Esse nego só quer ser intelectual, ô nego bom duma foice”. Mas “Balança, nego Baia, a mamãe Isabel já aboliu a escravidão”. Sô nego de nascença. É duro ser nego nesse nosso convívio. A gente não tem sequer vinte por cento do nosso valor ontológico reconhecido. A gente tem de aprender a se interiorizar como ensinou o mestre Jesus. A reconhecer-se para não depender de apreciações viciadas de outrens. O belo da vida é não se esconder da chuva. Manter o sonho grande de Martin Luther King Jr. no temporal, sem temer olhar cerceador. Sem jamais se intimidar em face do outro. Sem precisar de aprovação de ninguém. Viva Marcos França artista espetacular. Viva Gerô voz forte do Maranhão. Viva Gil. Viva a poeta Pepita, rainha do Mov-Arte, esperança dos que precisam acreditar nas pessoas. Ser nego e fazer a vida ter sabor é uma arte. Eu queria na vida estar do lado dos mais fortes, mas não tem jeito. Queria ser aceito pelo meu valor total. Queria ter privilégios. Dinheiro para viajar o mundo. Queria tanta coisa nessa vida! Mas minha parteira informou que sô nego. E nego, admirável Pepita, tem de lutar todo dia para ser feliz. Não há tempo para dar ouvidos às tolices dos que nos desprezam. A gente tem de trabalhar duro. A gente tem de estudar sempre. A gente não pode se dar ao luxo de ser incompetente. Agora, minha forte amiga, entendo por que somos negros. Ser nego não é pra qualquer um.


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