segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

O PÉ DE CAJU DO LAPINDAIA







Ninguém tem ao certo a dimensão do medo. Quando criança, o seu Lapindaia era para mim o leviatã dos mares fenícios, e seu pigarro, qual um grunhido do mostro marinho descrito no livro de Jó, me apressava a reação instintiva para fuga. Mas seu Lapindaia era apenas um velhinho cego, neto de escravos. Eu não devia temê-lo se não tivesse roubando seus cajus. Era um pé de caju enorme. A castanha era bibô. Até seu Chico Calé, na hora da compra, reconhecia se a castanha fosse do pé de caju de seu Lapindaia. Quando seu Calé olhava para mim, eu já ia me justificando, como um ladrãozim inexperiente que era. "Eu num robei no pé de caju do Lapindaia não, seu Chico. Ganhei dos meninos da rua do Tiro, na galinha gorda, pode perguntar o Pretim. Num foi não, Pretim?". Pretinho me ajudava, "foi sim, seu Calé, exi infiliz tarra cum sorte di mais hoje". O comerciante sorria, fingindo acreditar. Eu até jogava galinha gorda e triângulo de peteca, mas meu litro enchia de castanha mesmo era quando eu roubava as bibozonas do Lapindaia. Aquele pé de caju era único. Parecia um fruto encantado, vindo da terra dos gigantes mitológicos, onde habitam os leviatãs. Depois de adulto, parei com a atividade indigna do furto, mas sou frequentemente assombrado pelo Leviatã moderno de Thomas Hobbes a que chamamos Estado.  
 

domingo, 2 de fevereiro de 2014

A HISTÓRIA DE FLORIANO



A infância em Salgueiro fora inesquecível. Floriano era como esses meninos felizes da classe média clássica. Estudou na melhor escola da cidade e possuiu bicicleta BMX. O futuro às vezes não dá nem um sinal de como será. Talvez por isso a gente se perca no presente e não veja certas veredas de escape. Quando Floriano concluiu a primeira fase na escola, a família lhe pôs para estudar em Recife. Foi na faculdade que conheceu Juliano e Manuel. E foi com esses amigos que conheceu a boemia da capital. “Era quem sabe a esperança de ir a outro lugar”. O tempo mais duro que existe é sempre o presente. Floriano tinha agora uma nova vida, achava tudo estranho, mas fascinante também. Manuel era um rapaz calmo e inteligente, metido com coisas de versos. Conhecia uns poetas na cidade, e nas conversas com Floriano sempre queria saber coisas sobre o sertão. Com Manuel, Floriano podia falar de sua vida em Salgueiro e contar ao amigo a história de sua família, o interesse do pai por política e o desejo da mãe de vê-lo formar-se advogado. O pai de Floriano, Dr. Clóvis Nogueira, era um advogado conhecido na região de Salgueiro e seu avô paterno, coronel Jorge Nogueira, fora prefeito da cidade por dois mandatos. Além de realizar o desejo da mãe, Floriano tinha a obrigação de manter a tradição da família, que era de poder político e distinção social. Ademais, era o único filho homem do casal Nogueira e ainda o primogênito. Suas duas irmãs eram pequenas e a família tinha para elas outros planos. Em Recife, as aulas lhe atraíam menos que as noites de brisa e boemia. Juliano era daqueles amigos que nenhum estudante devia ter. O rapaz só pensava em mulheres e festas. É certo que Floriano tinha mais afinidade com o amigo Manuel, que era culto e comedido. Todavia, era com Juliano que Floriano saía mais frequentemente. Numa dessas andanças pela cidade o rapaz conheceu o mais forte e único amor de sua vida. Floriano viu em Ana Cláudia tudo o que era preciso para lhe encantar. Se esta narrativa aqui fosse um romance, eu ia escrever cinco páginas para dizer como esse encontro se deu. Para o meu gênero apressado basta dizer que foi um encontro e uma paixão. Não faltou desassossego, nem ciúmes, nem brigas. Floriano agora só tinha juízo para pensar em Ana Cláudia. Foi, desde o início, um relacionamento conturbado. Durou o suficiente para esperar o dia da tragédia, que não demorou chegar. Floriano era um jovem ansioso. E a paixão traz sempre um desequilíbrio mental duradouro. Manuel tentou alertar o amigo sobre seu estado, dizendo que Floriano devia cuidar dos estudos e não concentrar todo seu tempo e atenção apenas ao namoro com Ana Cláudia. Mas o rapaz, como todos os apaixonados, não estava para ouviu conselhos. Faltava as aulas na faculdade e queria está sempre ao pé de Ana Cláudia, que o via apenas como mais um homem. Ana Cláudia foi para Floriano a única mulher. Era uma tarde qualquer no Recife, quando pela praia Floriano surpreendeu Ana Cláudia aos beijos com Juliano. A razão fugiu de Floriano naquele instante. O amigo desalmado não foi homem para esperar por sua fúria. Ana Cláudia não teve tempo de fugir. Floriano espancou a mulher sem piedade e não a matou porque banhistas intervieram a favor da moça. “Rapariga da peste, eu ainda te mato”, bradava Floriano enquanto fugia. Ninguém mais viu em Recife aquele jovem estudante atormentado. Os Nogueiras de Salgueiro foram várias vezes a capital do estado para saber de Floriano. Nunca foi possível saber notícia alguma. Procuraram no necrotério, mas nada. Eu não sei como aquele homem culto veio parar em minha cidade. Eu sempre o via no mercado municipal como um mentecapto. Via-se, porém, que era um homem com estudo e era gentil. Nos poucos momentos de lucidez, falava dos mistérios da vida e de seu passado em Pernambuco. Xingava muito. “Rapariga da peste” era o que mais se ouvia. Vivia numa choupana no pé do morro. Eu e outros moleques da rua íamos vê-lo. Com a perversidade típica da idade, jogávamos pedra em sua casa só para ouvi-lo xingar. O tempo passou. O velho morreu, onde hoje fica o bairro Floriano. Dizem que um dia umas pessoas muito distintas, com sotaque pernambucano, procuravam um membro de sua família de nome Floriano, que vivera por muitos anos naquela cidadezinha, segundo haviam apurado. Era nosso personagem. Daí fiquei sabendo de onde viera o homem que dá nome ao nosso bairro. Mas como conhecer sua história? Então resolvi escrever a história de Floriano Nogueira Sobrinho. Não sei se me saiu meio ao Chicó de Ariano Suassuna, mas asseguro que a história sucedeu assim.