sexta-feira, 5 de julho de 2013

MANGUITA


Quando eu estava na faculdade, às vezes, saía e voltava lá para o meu riacho de infância. O Ítalo ficava falando de Hans Kelsen, John Stuart Mill, Norberto Bobbio e eu já estava longe. O objeto de meu fascínio era mais que os livros, era a própria vida. Como o escritor Carlos Drummond de Andrade um dia percebera que sua história era mais bonita do que a de Robson Crusué, eu também via mais vida em minha história do que em mil tratados de boa filosofia. Assim, eu já não era mais um estudante, voltara a ser um aventureiro da Buritirana. Não era fácil transpor aquelas veredas íngremes. Cada descida era um risco mortal. O caminho mais duro para o Mucambo era pela Buritirana. Mas foi bom enfrentar a Buritirana. Eu estava aprendendo a viver. No inverno ou no estio, tudo me levava ao meu riacho Mucambo. Aquele lugar maravilhoso completava a minha nutrição diária e espantava a inanição. Tudo era natural naqueles dias. A gente precisava esperar cada estação. Eu ficava ansioso pelo tempo de manga. Quando as mangas maduravam, eu não fazia caso dos ingás. As outras frutas perdiam o sabor. Na escassez, a gente comia até jatobá, mas com as mangas o paladar se refinava. Eram muitas e variadas. Cada mangueira uma delícia. Se pelos frutos se conhece a árvore, foi um grande prazer conhecer o velho pé de manguita do brejo de seu David. A manguita era o menor fruto do mangal, mas não existe manga mais suculenta! É do tamanho de uma maçã pequena. Tem um cheiro inebriante. Mistura os sentidos. O cheiro é uma delícia. A árvore de manguita é grande como o sabor daquele fruto miúdo. A gente vive com o cheiro de manguita para sempre. Não sai da memória. Transcende à consciência, é uma sensação de raiz. Na chuva a manguita caía direto em minha mão, já lavada. Eu provei delícias de minha terra! O Ítalo nasceu e passou a infância em São Luís. O pai dele era médico. Acho que o Ítalo nunca comeu uma manguita. Já o meu pai era lavrador e eu nasci em Nova Vida, agreste do Piauí. Onde cresci havia muitos ingazeiros e mangueiras, na beira do riacho. O ingá é sem sabor como pedra de toá, mas a manga é rainha das delícias e tem espírito social. É o alimento dos oprimidos sem pomar. Minha família não tinha terras, nem gado, nem mangal, mas a generosidade dos proprietários de terra e a cultura do lugar nunca deixaram faltar manga em meu tiracolo. A manga foice do Pinico tinha a vantagem de ser grande e logo aplacar a fome. A manga-fiapo do Arial compensava a grande caminhada. A peito de moça do mangal do Cirilo causava-me frenesi, lembrando de Rosa, uma menina doce de minha turma na escola Afrânio Nunes. A manga-rosa do Brejo era proibido apanhar, mas a gente furtava e comia. A gente naquele tempo não aceitava que a melhor parte das coisas só fosse acessível aos ricos. Depois de tudo, eu voltava para faculdade, com a boca amarelada lambuzada de manga. O Ítalo, meu inteligente amigo do Maranhão, ainda falava de Sartre. Aí me lembrei de Paulo Freire e vi que “a vida precede os livros” e que minha história também era mais bonita do que a de Robson Crusué”.

2 comentários:

  1. impressiona o malabarismo filosófico e literário que faz com as palavras. Parabéns amigo! a manguita e a manga de fiapo também faz parte da minha infância.rsrs

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